sábado, 10 de abril de 2021

«AQUILO QUE É»

 

   Paris, 1984, 7 de Março. Gérard Lebovici, homem influente da indústria cinematográfica francesa, revolucionário editor da Champ Libre, com forte ligação ao situacionista Guy Debord a partir de 1971, é encontrado no interior do seu carro com quatro balas na nuca. A autópsia revela assassinato, cometido dois dias antes de haverem dado com o corpo. Nunca se apurou a autoria do crime, mas correram rumores que apontaram em diferentes direcções. O próprio Debord chegou a estar sob suspeita, assim como, mais tarde, responsáveis pelo combate ao terrorismo às ordens da presidência de “mon ami Mitterrand”. Facto é que na França de 1984 um editor de livros inconvenientes, refira-se en passant, foi barbaramente assassinado. Era assim quando os editores de livros e os escritores e os intelectuais e os artistas tinham verdadeiro peso em sociedades a salvo dos lenitivos cibernéticos e dos psicotrópicos algorítmicos.
   Não vale a pena queixarmo-nos do presente com nostalgia do passado, as coisas são o que são e é no e com o que temos que a acção revolucionária, progressista, insubmissa deve desbravar caminho ao encontro de mentalidades mais críticas, esclarecidas, inquietas, abertas e inconformadas. Essa é uma das funções que vem cabendo a pequenas editoras como é o exemplo da Barco Bêbado, de Emanuel Cameira, que não se exime de dar trabalho aos leitores insistindo na publicação de epistolografia que, de um modo lato, mas evidente, contribui para demarcar o seu território de acção. «Aquilo que é» (Fevereiro de 2021), troca de correspondência entre Jaime Semprun, Guy Debord e Gérard Lebovici, com tradução de Miguel Serras Pereira e ilustrações de Manuel Baptista, insere-se neste contexto dissertativo de princípios e propósitos, à laia de livro de estilo, meticulosamente delineados através da recuperação de textos que nos dão a ver, como bem refere Eduarda Neves no posfácio, «indivíduos para quem as folhas em branco se desdobram em território de luta» (p. 58).
   Datam estas cartas do final de 1976 e início de 1977. Semprun interpela Debord acerca da sua possível influência na decisão da editora Champ Libre recusar a publicação de umas teses sobre a situação espanhola depois de haver publicado La Guerre sociale au Portugal (1975) e Précis de récupération, ilustré de nombreux exemples de l’histoire récente (1976), recebendo do autor de A Sociedade do Espectáculo uma longa dissertação sobre o que deva ser uma editora, qual a sua função social e o papel de um dos seus autores nela: «Apesar do que alguns possam dizer, eu não sou o Weltgeist sentado atrás das garrafas e a Champ Libre não é criação minha» (p. 19). Acresce, em tom sarcástico como manda a regra, a questão — sempre folclórica nestes casos — das relações pessoais. Sem pretender saciar a curiosidade voyeurista de eventuais leitores, não resisto à citação: «Creio que pessoas que se aborrecem juntas fazem melhor em não se verem, qualquer que seja o seu acordo sobre uma quantidade de questões, e sobretudo sem se crerem obrigadas a edificar a partir disso divergências teórico-práticas mais vastas que não estavam em causa no caso» (p. 31). Uma lição para vida.
    Se, por um lado, facilmente se admira a obstinação de Semprun na defesa do seu projecto, por outro compreende-se o que terá afastado tanto Debord como Lebovici. No entanto, em vez de transformar esta guerrilha epistolar numa espécie de batalha naval, para a qual contribuiriam juízos de valor e de carácter porventura precipitados, o que há a reter entre os implicados é a consciência da seriedade subjacente a um projecto editorial, o qual não se ergue para satisfazer as vaidades de uns e alimentar os egos de outros, mas sim com um fim de participação cívica na vida pública que passa por encarar a publicação de um texto como uma ferramenta de acção, que não de propaganda e, muito menos, de mero entretenimento. «Podes saber que não tenho qualquer gosto maníaco pela escrita, e pensarás bem que se escrevi este livro não foi por querer a todo o preço entregar anualmente ao público as minhas reflexões sobre o problema do dia» (p. 43), assevera Jaime Semprun. Ora aqui está um excelente mas temo que frustrante desafio, tentar perceber a razão de ser e o propósito de tanto livro que hoje se escreve e se publica.

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