sexta-feira, 2 de abril de 2021

EPISTROPHY (1941)

 


Este país está cheio de especialistas em vinho, covid-19 e poesia. Antes soubessem de cactos. Tenho dois no sótão, estão mortos, mas mantenho os vasos devidamente dispostos sob uma das janelas onde a terra seca e as folhas podres apanham sol. Em tempos, uma aranha relativamente desenvolvida fazia-me companhia. Nunca lhe desfiz a teia. Depois desapareceu. Desconfio que um dos cactos a engoliu. Se lamento a perda dos cactos, por outro lado sinto certo alívio em mantê-los mortos. Não picam, não ferem, não reclamam por cuidados, limitam-se a exalar um aroma a mortandade que é o mais belo elemento decorativo deste lugar onde me sento todos os dias para escrever, ler, ouvir música, desenhar, tocar guitarra, bater uma sorna. Estou rodeado de especialistas e pilhas de livros, mas sobre cactos não há quem me esclareça. Têm vida? Comem aranhas? Respiram mesmo se mortos? Ouvem Thelonious Monk? Os meus cactos precisam de uma baronesa Pannonica de Koenigswarter que cuide deles, eu ando imensamente atarefado com inúmeras insignificâncias. São pilhas de Quadros, a integral de Gil Vicente, as peças do Daniel Keene, mais novos e os novíssimos e os nem tanto e os velhos e os ultrapassados e podres como cactos devidamente dispostos sob a janela de um sótão onde possam apanhar sol e contar estrelas se, por sorte, a noite estiver limpa.

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