sábado, 29 de maio de 2021

DIZER

 

Em Rostos da Morte, o filósofo Byung-Chul Han propõe uma onomatanatologia que procure responder à questão: «porquê dar um nome a um homem?» «O nome é a marca da fugacidade», diz, acrescentando que «ter nome próprio designa que se tem um destino e uma história». Esta mesma problemática pode ser vislumbrada no mais recente livro de poesia de Yvette K. Centeno (n. 1940), o qual se organiza em torno de um verbo fundador escolhido para título: Dizer (Eufeme, Fevereiro de 2021). Organizado em três conjuntos de poemas, cremos que o primeiro, intitulado Dizer (o mundo existe), e o terceiro, com o título Agora, se ligam de modo espontâneo, sendo o conjunto intercalar, escrito sob a égide da pintura de Pedro Chorão, uma espécie de intermezzo que não descontinua a corrente interpelativa acerca disto que dizemos ser o estar aqui. Martin Heidegger, evocado mais do que uma vez neste livro, definiu a presença, o estar aqui, como um ser para a morte, sendo a morte, antes de mais, a consciência que dela temos através da experiência da finitude e da experiência da temporalidade, ruína que leva ao desaparecimento. «A morte é, no entanto, apenas o “fim” da presença e, em sentido formal, apenas um dos fins que abrangem a totalidade da presença. O outro fim é o princípio, o nascimento», afirma Heidegger em Ser e Tempo. Ora, é precisamente no princípio, ao nascermos, que um nome nos é atribuído. Para quê? Para o outro nos identificar?
   O nosso nome não foi por nós escolhido, não é sequer uma conquista de que nos possamos orgulhar ou um estádio que se alcance por via do desenvolvimento da personalidade. É uma marca, isto é, um estigma submetido por um outro que nos é exterior. Podemos talvez dizer: o que nós somos é o outro do nosso nome. Este apresenta-se como uma espécie de sombra, a que Peter Schlemihl, também convocado por Yvette K. Centeno, vendeu. O nome não chega sequer a ecoar-nos, apenas nos persegue como uma sombra. Carregar um nome é também carregar uma história anterior à nossa própria existência. O nosso nome próprio não reflecte a nossa própria história, mas antes uma história que nos precede e liga a um passado, uma história que nos enraíza noutras histórias precedentes, raiz de uma genealogia carregada de nomes dos quais o nosso provém. Um nome cai na terra como um fruto maduro, funde-se com a terra, é húmus e semente de outros nomes.
  Seremos nós, a dado momento, quem nomeia. Começar a falar é começar a nomear. Ao poeta cabe renomear o mundo. No poema Alquímico, o último do primeiro conjunto deste Dizer, o jardim da primeira estrofe renomeia o Éden. O ciclo da vida cumpre-se caminhando: «Não abras o portão / desse jardim / nem fiques de fora / à espera // Segue / vê onde enterras os pés / procura onde deixaste / os teus sapatos / mesmo velhos e rotos / terão de ser calçados // O homem tem o teu nome / e já abriu na terra a vala / dos descalços» (p. 49). Os descalços estão por nomear, o que de certo modo quer dizer que estão por nascer, mas já a morte os aguarda pois é da natureza do gerado vir a perecer. Nomear é, então, fazer aparecer, nascer, mas é também dar ao desaparecimento, já que nascer é estar à morte. Quantas palavras esquecidas e desaparecidas neste mundo cada vez mais estreitado no ruído dos mesmíssimos vocábulos permanentemente repetidos? Adão torna-se mortal através do nome, que significa terra ou humanidade. Não há diferença. Nascer é abrir-se à morte, ou, como noutro poema deste livro se diz, «Risco de vida é estar vivo, / Tudo o resto é fantasia» (p. 44). Trata-se de um koan, textos que no budismo zen têm o propósito de iluminar espiritualmente os praticantes. Além dos koan, a Autora recorre também, de um modo muito informal, ao haiku como síntese poética privilegiada de reflexões invariavelmente relacionadas com esta interpelação da existência, da presença, do estar e ser aqui: «o que sou eu afinal, / o já caído / que a terra amortalhou / e tu, / o esplendoroso, / entre estes mundos?» (p. 25). 
   Mas por que razão «dizer o nome / é entregar a vida», como se sugere no poema Deméter-Perséfone (p. 40)? É como se o nome fosse uma coisa que se desse através do dizer. Pronunciar um nome é dar algo, há como que uma transferência do sentido que o nome incorpora. Assim sendo, o dizer é, antes de mais, uma doação, uma dádiva, um legado. No dizer há, assim, uma pro-criação. A poesia é essa interpelação que provoca as coisas. Nomear não é apenas oferecer ao esquecimento, é também gerar a possibilidade de relembrar. Não será por acaso que este livro oscila tanto entre a interrogação e a declaração, nele repousa uma espécie de súmula ao mesmo tempo extraordinariamente simples e complexa. Yvette K. Centeno, cujo primeiro livro foi publicado em 1961, mas a quem a história da literatura portuguesa tem reservado parcas linhas, lega-nos aos 80 anos de vida um dos melhores livros que por certo leremos este ano, vivo, inteligente e desafiante como poucos. A relação de proximidade com a pintura, arte por excelência do silêncio, seria outro tema a explorar. Fique o poema, o último deste belíssimo livro:
 
O PINTOR E A SOMBRA
 
(para o Pedro e a Graça)
 
Estava sempre a seu lado,
tão discreta
que se não fosse a luz
carregada de azul
ninguém diria
que estava ali a Sombra,
a Protectora
da alma dividida:
não se podia vislumbrar
e apenas emergia do silêncio
para afastar o Anjo
negro reverso da luz
que lhe fechava as portas
e se o deixasse sozinho
lhe secaria as cores
nas bisnagas escolhidas
cada dia

 
(Lisboa, 1 de Fevereiro de 2021)

2 comentários:

Yvette Centeno disse...

Tinha de ser de um filósofo poeta um comentário ao meu livro, como este que fez.
Leu por dentro, e deu-me a ver o que eu talvez não visse, sem a sua ajuda...obrigada, Vou ler o que escreve, como autor...beijo amigo e grato.

hmbf disse...

Muitos parabéns pelo "Dizer", é um belíssimo livro. Saúde, h