quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #26



   Agora que o fim de mais um ano se aproxima, e os balanços se intrometem inevitáveis como inevitável é o termo de tudo quanto começa, sugiro-vos que não alimenteis ilusões quanto a isto de ir vivendo trazer no âmago pingo de seriedade. Se a vida é uma passagem, pois que se cumpra usufruindo dos prazeres que, por acidente ou por acaso, se atravessam no caminho. Rir é, sem dúvida, o melhor remédio para quem logo à nascença se vê obrigado a chorar. Podeis pegar nos “Contos de São Petersburgo”, vindos a lume na primeira metade do século XIX, para vos certificardes de que em matéria de alma humana pouco muda com o passar dos anos. Transforma-se a paisagem, baralha-se a hierarquia de valores, inventam-se vacinas, mas a besta que há em nós perdura inalterável. Nikolai Gógol, o russo ucraniano que dizem ter sido atacado por depressões e crises místicas, pode não ter dado a volta à agonia e ao sofrimento que o atormentaram, mas nos contos que outorgou aos leitores tudo quanto parece real surge fantástico, não sendo por isso de menosprezar a hipótese de tudo quanto neles surge fantástico ter sido deveras real. Pretendeis, minhas filhas, melhor retrato do ano que passou do que este? 
   Eis-nos em 2019, a passear na Avenida Névski, rodeados de gente decente, ao encontro de uma «beleza atingida pelo bafo putrefaciente da devassidão». Logo em Janeiro, a televisão nacional ofereceu-nos para entretenimento, como quem oferece um Natal dos Hospitais, o líder dos neonazis portugueses em pose de respeitável pai de família. Haverá exemplo mais frustrante de realismo invertido do que esta tendência para desmemoriar as massas pintando com cores aprazíveis o que é repugnante? Não será este o modelo exemplar de como mais do que a paz, mais do que o amor, o verdadeiro e único valor que impera neste mundo é a audiência, aqui medida e pesada ao preço de um ouro que sairá tão oneroso quanto aos escravos ficou aquele que em tempos trouxemos do Brasil?
   Começámos a manhã de 2019 com um criminoso aberrante de cara lavada, prenúncio do que, ao longo do ano, acabou por se transformar em regra para que definitivamente aprendamos a conviver com o ópio das multidões: não importam os meios se os fins forem rentáveis. Perante os factos, a transferência da rainha das audiências de um canal para o outro não pode ser interpretado como mero fait divers. O empolamento da situação podia ser apenas adorno na feira de vaidades, mas antes se transforma no símbolo mais doce de uma estupidez que já ninguém escandaliza. Resultado: que importa se o ídolo da nação fugiu ao fisco ou violou uma mulher? É o ídolo da nação, logo intocável. Ao contrário, habitantes do Bairro da Jamaica, ou quem os defenda, devem ser apontados como escândalo nacional, pois tudo quanto fizemos para integrá-los falhou. Integrá-los em quê? «Oh, não confiem nesta Avenida Névski! Eu, quando deambulo por ela, agasalho-me sempre o melhor possível na minha capa e tento não olhar para os objectos que encontro. É tudo engano, é tudo sonho, nada é o que parece!» 
   Minhas filhas, se ouvires dizer na tal Avenida que o nosso país tem um problema com as minorias, não vos esqueceis de quão minoritária é, pois, a minoria do bom senso. Em matéria de trafulhas, cromos para troca nunca faltam. Evitai, no entanto, fazer como Tchartkov, pois nem tudo é uma porcaria neste mundo. Em aprendendo a rir da porcaria, até se torna sustentável frequentá-lo. Com as devidas distâncias. Podemos olhar com graça tanto para um recluso que enfia 7 telemóveis no cu como para um magnata que se recusa a cumprir ordem para demolir WC com vista para o Palácio das Necessidades. Julgais fruto da minha imaginação tais notícias? Pois aí tendes 2019, o ano em que tudo quanto era inimaginável se tornou simplesmente vulgar. Os ficcionistas que se ponham a pau. Se quiserem surpreender, no futuro, terão de ser o mais sóbrios possível. Quem conseguirá aguentar estardalhaço sobre estardalhaço? Como nos contos de Gogól, o que no entretanto haverá de sonho ou realidade será tão destrinçável quanto o negro o é do preto. Perguntai às vítimas de violência doméstica que ao longo do ano contribuíram para as estatísticas de um país que surge entre os mais pacíficos do mundo. Se obtiveres resposta, dizei-me qual foi. 
   Escutar a um deputado da nação que “fake news” e populismo são tretas de Bruxelas  soa-nos aos ouvidos, deste modo, como recado acerca de uma “tísica galopante” que ameaça transformar-nos em “pequenos agiotas”, de juízes com listas negras a estrelas de canais televisivos. Das cheias em Moçambique ao ódio a uma jovem activista, da Amazónia em chamas à intimidação de humoristas, vai apenas  um twitt no “diário de um louco” capaz de celebrar o “crepúsculo do socialismo” ajoelhado aos pés de um bispo evangélico. Empreendedorismo é isto mesmo, minhas filhas, é manipular o poder com os tentáculos da religião, locomovendo tudo quanto possa servir à engorda dos cofres com que se operam milagres e se inventam "messias & mártires". Este mundo globalizado, escancarado às multinacionais, mas encerrado às pessoas, com muros erguidos um pouco por todo o lado (não é metáfora), é o mundo de loucos que vos espera. 
   Se os atentados continuarem pelo Sri Lanka, dai-vos por satisfeitas. Não se chega lá de caleche, meio de transporte utilizado por certa comunicação social para quem as auto-estradas da informação ainda estão cheias de portagens. Mais do que mostrar quanto há, mostra-se quanto convém. Daí que não importe mostrar o Chile, se convir mostrar a Venezuela, e assim sucessivamente. Depois, andaremos entretidos com cartoons proibidos, declarações de amor à China, elevados índices de abstenção, deputadas gagas, deputados patológicos, manifestações de polícias, injecções de capital, dívidas fantasma, operações stop, mercado de transferências milionárias, assessores de saias, peixes inteligentes, conseguindo vislumbrar maneira de chamar cultura superior a esta que continua tão entretida com o seu bem-estar encavalitado na desgraça alheia. Enfim, não deixa de ser verdade, como sabeis, que para se ser superior tem de alguém oferecer os ombros. Os inferiores. Ou, em versão actualizada: os outros que explorem o lítio, a gente depois dá-lhes o uso devido. 
   Inesperadamente, um final fantástico: «Na polícia foi emitida a ordem de apanhar o morto, custasse o que custasse, vivo ou morto, e de lhe ser aplicado impiedosamente o devido castigo, para edificação dos outros, e a empresa quase teve êxito». O morto somos nós, minhas filhas, nós que aceitamos o revisionismo histórico e a expurgação da memória como quem abraça alegremente o reino da estupidez, conformados por entre a loucura e a normalidade ter deixado de haver fronteiras, por entre a ficção e a realidade se terem esbatido muralhas, pois essas, agora, erguem-se apenas e cada vez mais na Terra para que possam ser garantidos aos ricos os condomínios fechados onde os pobres apenas entrarão para varrer ruas, lavar latrinas, colher lixo. 

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