quarta-feira, 8 de setembro de 2021

HADEWIJCH


 

O amor faz crescer, avassaladora e adstringente, a sua ausência
no teu corpo; e eu amo-te como o amor ama:
— eu desejo a presença da tua ausência no meu corpo.

O teu corpo magro, batido e flagelado pelo vento do espírito
Que ergue, eriça e embaraça os teus húmidos cabelos 
— deixa-me que to beije, que te imponha a marca do silêncio
Marca do mundo e dos amantes
na boca do teu corpo

Pela boca d[esse, teu] copo sopras as vibrações da flauta, as vibrações da
música do teu espírito que apaga e acende (n)o meu corpo. Eu

sacudo a cabeça para me libertar dessa música. Mas ela contaminou
já as nuvens e os lençóis aquáticos. Ela é já o próprio ar.
O ar que a respirar (me) obrigas. Desde antigamente. E agora
O ar é então a tua música soando, a tua música soprada
Por mil tubos.
E as vibrações da música
Entretecem as paisagens
enquanto um barco avança majestoso no mar de erva verde
que o separa de nós.

E é simultaneamente no sonho da tua cabeça inquieta
Nos teus olhos que a luz mediterrânea cega
que ele se afirma sobre o mar original como se fosse
uma longa frase que demoradamente estivesse
a chegar, sílaba
após sílaba,
enquanto um verso vindo do interior
se desfere em rajadas sucessivas sobre as vogais
deixando-as a vibrar contra a abóbada do céu
antigo, ou contra
o céu da boca da deusa que na praia se levanta
para
receber o herói

— tu ias virando as páginas 
passas, agora,
por baixo do arco alto e entras no fim duma rua
que dá para um largo que dá para os campos e campos
da memória, — outra página
e estás deitado
numa duna e outra: passas a ter apoiadas as costas
num maciço de pequenas pedras e de formidáveis raízes
que rebentaram a primeira capa da crosta da terra.

Olhando em frente vês — como se fossem
cabras negras empinando-se magras e empinadas
nas arestas cimeiras das colinas
e minuciosamente
dedicadas
ao seu antigo ofício de cabras: o de pastarem
e ruminarem a erva rala daqueles lugares altos
da paisagem —
um bando de jovens raparigas
em flor
que projectavam a sua voz e a sua sombra cristalina
sobre as águas correntes do masculino rio
que de leste a oeste corta como um raio
o verde vale que escondia as minas
ou a veleira praia que contigo trazias
na areia que te magoava nos sapatos os pés.


Manuel Gusmão, in Contra todas as evidências - Poemas Reunidos III, Edições Avante, Agosto de 2015, pp. 136-137.

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