(com citação de Miguel Torga)
Escapámos da servidão sem ver
o pão crescer. Ansiávamos por ser livres e partimos, nem tempo tivemos para
dizer adeus ao mal que nos fora feito. Apartados passo a passo, lentamente, da
levedura com que erguemos pirâmides no forno da terra, em certo sentido fomos o
fermento dos nossos senhores, escravos de carga com pedregulhos de Aswan
carregados aos ombros. Curvados andámos durante séculos, esturrando ao sol as
chagas abertas pelos chicotes dos tiranos. Nada mais nos restava senão fugir,
agarrados uns aos outros pela corrente da fé. Assim nos libertámos de uma
prisão para noutra nos encarcerarmos. Neste maldito mar andámos à deriva até
aqui encalharem os nossos sonhos, rodeados de muros altos como animais
selvagens num zoológico de homens, mulheres e crianças. Minha mãe aqui chegou
transportada nos alforges dum burro. Eu e meus irmãos somos filhos de refugiados,
esta é a história do povo eleito. Deus quis assim. Vem no segundo livro das
nossas memórias. Desde então, nosso Pai ordenou que pela Páscoa nos
alimentássemos com pão ázimo em memória da maldade padecida. Lembramo-nos do
que passámos esquecendo-nos do que somos. Uma boca não pede o que lhe é dado. Por Deus nos foi dada a
liberdade que os homens nos roubam. Foram tantas as privações e tão profunda a
aflição, eram tempos sem luz e pela treva seguimos por carreiros de cabras como
rebanhos extraviados. Oprimidos, pelo deserto nos encaminhou Moisés até ao
lugar de Canaã. A nado chegámos à ilha de Lesbos, agora aqui estamos sem ter
para onde ir. Encalhados na surdez da Europa, os gritos da nossa fome retumbam
mudos na indiferença de quem nos viu partir sem ter onde chegar. Há anos que
ouvimos mal. Não é bem não ouvir, é não perceber. Nós ouvimos, mas não
percebemos a palavra. Eis a história do nosso êxodo.
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