François Rabelais (1494-1553), monge, escritor
renascentista francês, autor das comédias Pantagruel
e Gargântua foi um exímio
desmistificador que colocou o humor ao serviço da razão. Trocou correspondência
com Erasmo de Roterdão, autor de Laus
stultitiae (O Elogio da Loucura), obra maior do Renascimento. Perseguido
pelos textos cómicos, escatológicos, pelas sátiras ao poder, viu as suas obras
serem confiscadas. Fazendo uso das narrativas picarescas, das lendas e dos
relatos populares, denunciou vários dos problemas do seu tempo, nomeadamente a violência
exercida pela Igreja, na mesma medida em que procurava libertar o povo de
superstições inconsequentes. A sua epilenia (canção dos vindimadores) no
capítulo XLV de Pantagruel ficou célebre
como exemplo percursor da chamada poesia visual:
A tradução, de Miguel Martins, acompanha
a edição portuguesa do Tratado do Bom Uso
do Vinho (momo, Dezembro de 2019). Rabelais, que dedicou à Medicina grande
parte da sua vida, parecia saber do que falava:
Conclusão: illa bonis consilietur amice (Para servir de
conselho amistoso às boas pessoas)
Bebedores ilustres! nobres indelicados! estimáveis gulosos! sondadores
de jarros! Levantadores de garrafas! giradores de rolhas! intendentes da visão
turva! discípulos de São Martinho! irmãos grogues! irmãos ébrios! irmãos insaciáveis
e arrotadores avinhados! banqueteadores e bêbedos! os que batem os dentes e os
que dão à língua! grandes glutões! barrigas bojudas! flatulentos e cobardes! irmãos
loucos e mui prezados! Em conclusão, notem bem o seguinte: se desejam
conservar, ao longo da vida, a saúde e a elegância, escutem atentamente estas
seis regras:
Nunca bebam sozinhos. A companhia de bebedores é algo de altamente estimável e as suas palavras tonitruantes têm um peso considerável nos círculos policiais. Mais ainda: vejam dois bêbedos; se um deles, com a vista completamente turva, tropeçar, o outro levantá-lo-á.
Ora bem: ao romper da aurora, ao luar virginal da alvorada, o melhor é brindarmos com Matusalém; a meio do dia com Baltasar; ao crepúsculo bebamos a nossa garrafa à saúde de Nabucodonosor. (Referência às capacidades dos vasilhames vinários: Matusalém, 6 litros; Baltasar, 12 litros; Nabucodonosor, 15 litros).
Não bebam senão do melhor. Bebam do de confiança. Plínio incita-nos a distinguirmos os vinhos imbecis dos vinhos válidos: os malandros preferirão os segundos. Tenham cuidado com a água-pé e com os vinhos velhos. Tenham cuidado com os vinhos com pé.
Evitem a cerveja. O poeta Bachelin chama aos bebedores de cerveja: bocas mijonas; e afirma, com justeza, que uma tal beberragem é boa para os flamengos e os alamanos, dado que possuem almas vulgares. E beber cerveja provoca maleitas: Júlio, o Santo Padre, bebia cerveja e, por lhe crescer a barba, provocou grande indignação. Por esse motivo, também Erasmo de Roterdão afirma que a cerveja deve ser infligida aos perdidos e aos apóstatas, dado que é um castigo bastante duro, assim seja a falta suficientemente pesada.
Mas, mais do que tudo, evitem a água: de todos os fluídos, é o mais virulento. Imensos poetas e lasquenetes sucumbiram, lamentavelmente, em virtude desta. A água causa danos enormes, devido às suas fetidez e pestilência; Aristóteles, na sua História dos Animais, narra como um grande número de gafanhotos, tendo sido regados com água, se depravavam e, através da sua horrível pestilência, abateram oitenta mil pessoas na cidade de Azi. E os membros da congregação da Santa Sé sabem bem o que fazem quando deitam, através de um funil, água nas tripas heréticas: dado que quem bebe água tem sempre qualquer coisa a esconder e oculta em si alguma obscenidade.
Pois bem! Aprendamos com o ensinamento de Jesus Cristo em Caná, com o amável milagre do Cordeiro.
Evitem, também, o sangue, O sangue é pernicioso para o corpo humano, do que dão testemunho imensos escritos e opúsculos médicos, e o charlatão Avicena, também ele, recomenda a prática abundante de sangrias. Reconhecemos que o sangue é um fluído gravemente nefasto em virtude de jorrar e escorrer mal se pica alguém com um punhal: dado que o corpo humano aproveita a menor ocasião para se desfazer desse veneno; e Manardi de Ferrara ensina-nos que devemos ouvir aquilo que o corpo nos ordena, dado que o Espírito Santo nos fala através dele. Eis a razão porque, erguendo o seu cálice, o Salvador diz: “Este é o meu sangue”, o que prescreve que troquemos todo o nosso sangue por vinho, já que um expulsa o outro; e seremos saudáveis e adoraremos Deus com fervor: Agios kathanatos ho Teos. (Deus é santo e imortal.)
E escutem! Fiquem, ainda, sabendo o seguinte: têm a vida inteira para se rirem, e toda a morte para descansarem.
Quem conheça o primeiro romance de
Rabelais, saberá que Pantagruel, filho do gigante Gargântua, órfão à nascença
de Badebec, tinha um apetite voraz. É, de resto, característica comum a muita
da literatura picaresca da época, como forma de sublinhar a enorme disparidade
entre a fome que grassava entre o povo e os banquetes sumptuosos da nobreza. O
nome Pantagruel tem origem num demónio do folclore bretão que gostava de lançar
sal na boca dos bêbedos adormecidos, de modo a que eles tivessem ainda mais
vontade de beber. Esta obsessão pelo vinho tem também por princípio a crença de
que no vinho estava a verdade, pois através dos seus efeitos o homem libertaria
a alma revelando o que nela ia. A verdade encontra-se, pois, escondida no
vinho. Já o ouvido que escuta a canção da Sagrada Garrafa esconde-se por detrás
da orelha amputada: tens tudo quanto é
vero em ti fechado. No tempo do Autor, um decreto determinava que se amputasse
uma orelha a quem exibisse embriaguez na via pública. A referência a Noé tem uma razão de ser, pois este foi o primeiro a
cultivar vinha e a vindimar. Além do mais, era consumidor de vinho. Certo dai embebedou-se e
ficou todo nu dentro da tenda. Cam viu o pai nu e foi contar aos irmãos, mas
Sem e Jafet aproximaram-se do pai, de costas voltadas para não o verem nu, e
taparam-no. Quando Noé acordou, ao saber o que se tinha passado, amaldiçoou
Canaã, filho de Cam, tornando-o escravo de Sem. Não nos esqueçamos, também, que
o primeiro milagre de Jesus foi o da conversão da água em vinho durante as
bodas de Caná. Não é fácil determinar o valor simbólico destas questões, sendo
certo que em todos os casos o vinho surge como elemento fundamentalmente associado à verdade e à qualidade de vida.
OH
GARRAFA,
TODA
TÃO
MISTERIOSA,
COM UMA ORELHA
TE ESCUTO;
SÊ PRESTIMOSA.
E PROFERE A
PALAVRA
AGUARDADA PELO
MEU CORAÇÃO
QUE ESTÁ NA TUA
DIVINA POÇÃO.
POIS NO TEU
VIDRO ACHA-SE ENCERRADO
BACO, QUE A
ÍNDIA TEVE EM SUA MÃO.
TENS TUDO QUANTO
É VERO EM TI FECHADO.
DIVINÍSSIMO
VINHO, LONGE DE TI A FÉ
É MENTIRA E
IMPOSTURA E TUDO ABARCA;
LOUVADO SEJA O
NOME DE NOÉ
E QUE NAVEGUE EM
TI A NOSSA BARCA.
DIZ-ME A PALAVRA
QUE TENS EM TUA ARCA,
E QUE ME TIRARÁ
TODOS OS MEDOS.
QUE NÃO SE
PERCA A TUA PANACEIA,
HAVENDO BRANCO
OU TINTO NO TEU CASCO.
EU TE SUPLICO, Ó
DIVINO FRASCO
CUJA ALMA ESTÁ CHEIA
DE SEGREDOS.
Nunca bebam sozinhos. A companhia de bebedores é algo de altamente estimável e as suas palavras tonitruantes têm um peso considerável nos círculos policiais. Mais ainda: vejam dois bêbedos; se um deles, com a vista completamente turva, tropeçar, o outro levantá-lo-á.
Ora bem: ao romper da aurora, ao luar virginal da alvorada, o melhor é brindarmos com Matusalém; a meio do dia com Baltasar; ao crepúsculo bebamos a nossa garrafa à saúde de Nabucodonosor. (Referência às capacidades dos vasilhames vinários: Matusalém, 6 litros; Baltasar, 12 litros; Nabucodonosor, 15 litros).
Não bebam senão do melhor. Bebam do de confiança. Plínio incita-nos a distinguirmos os vinhos imbecis dos vinhos válidos: os malandros preferirão os segundos. Tenham cuidado com a água-pé e com os vinhos velhos. Tenham cuidado com os vinhos com pé.
Evitem a cerveja. O poeta Bachelin chama aos bebedores de cerveja: bocas mijonas; e afirma, com justeza, que uma tal beberragem é boa para os flamengos e os alamanos, dado que possuem almas vulgares. E beber cerveja provoca maleitas: Júlio, o Santo Padre, bebia cerveja e, por lhe crescer a barba, provocou grande indignação. Por esse motivo, também Erasmo de Roterdão afirma que a cerveja deve ser infligida aos perdidos e aos apóstatas, dado que é um castigo bastante duro, assim seja a falta suficientemente pesada.
Mas, mais do que tudo, evitem a água: de todos os fluídos, é o mais virulento. Imensos poetas e lasquenetes sucumbiram, lamentavelmente, em virtude desta. A água causa danos enormes, devido às suas fetidez e pestilência; Aristóteles, na sua História dos Animais, narra como um grande número de gafanhotos, tendo sido regados com água, se depravavam e, através da sua horrível pestilência, abateram oitenta mil pessoas na cidade de Azi. E os membros da congregação da Santa Sé sabem bem o que fazem quando deitam, através de um funil, água nas tripas heréticas: dado que quem bebe água tem sempre qualquer coisa a esconder e oculta em si alguma obscenidade.
Pois bem! Aprendamos com o ensinamento de Jesus Cristo em Caná, com o amável milagre do Cordeiro.
Evitem, também, o sangue, O sangue é pernicioso para o corpo humano, do que dão testemunho imensos escritos e opúsculos médicos, e o charlatão Avicena, também ele, recomenda a prática abundante de sangrias. Reconhecemos que o sangue é um fluído gravemente nefasto em virtude de jorrar e escorrer mal se pica alguém com um punhal: dado que o corpo humano aproveita a menor ocasião para se desfazer desse veneno; e Manardi de Ferrara ensina-nos que devemos ouvir aquilo que o corpo nos ordena, dado que o Espírito Santo nos fala através dele. Eis a razão porque, erguendo o seu cálice, o Salvador diz: “Este é o meu sangue”, o que prescreve que troquemos todo o nosso sangue por vinho, já que um expulsa o outro; e seremos saudáveis e adoraremos Deus com fervor: Agios kathanatos ho Teos. (Deus é santo e imortal.)
E escutem! Fiquem, ainda, sabendo o seguinte: têm a vida inteira para se rirem, e toda a morte para descansarem.
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