segunda-feira, 20 de setembro de 2021

VERDADE & QUALIDADE

 


François Rabelais (1494-1553), monge, escritor renascentista francês, autor das comédias Pantagruel e Gargântua foi um exímio desmistificador que colocou o humor ao serviço da razão. Trocou correspondência com Erasmo de Roterdão, autor de Laus stultitiae (O Elogio da Loucura), obra maior do Renascimento. Perseguido pelos textos cómicos, escatológicos, pelas sátiras ao poder, viu as suas obras serem confiscadas. Fazendo uso das narrativas picarescas, das lendas e dos relatos populares, denunciou vários dos problemas do seu tempo, nomeadamente a violência exercida pela Igreja, na mesma medida em que procurava libertar o povo de superstições inconsequentes. A sua epilenia (canção dos vindimadores) no capítulo XLV de Pantagruel ficou célebre como exemplo percursor da chamada poesia visual:
 
OH
GARRAFA,
TODA
TÃO
MISTERIOSA,
COM UMA ORELHA
TE ESCUTO;
SÊ PRESTIMOSA.
E PROFERE A PALAVRA
AGUARDADA PELO MEU CORAÇÃO
QUE ESTÁ NA TUA DIVINA POÇÃO.
POIS NO TEU VIDRO ACHA-SE ENCERRADO
BACO, QUE A ÍNDIA TEVE EM SUA MÃO.
TENS TUDO QUANTO É VERO EM TI FECHADO.
DIVINÍSSIMO VINHO, LONGE DE TI A FÉ
É MENTIRA E IMPOSTURA E TUDO ABARCA;
LOUVADO SEJA O NOME DE NOÉ
E QUE NAVEGUE EM TI A NOSSA BARCA.
DIZ-ME A PALAVRA QUE TENS EM TUA ARCA,
E QUE ME TIRARÁ TODOS OS MEDOS.
QUE NÃO SE PERCA A TUA PANACEIA,
HAVENDO BRANCO OU TINTO NO TEU CASCO.
EU TE SUPLICO, Ó DIVINO FRASCO
CUJA ALMA ESTÁ CHEIA
DE SEGREDOS.
 
A tradução, de Miguel Martins, acompanha a edição portuguesa do Tratado do Bom Uso do Vinho (momo, Dezembro de 2019). Rabelais, que dedicou à Medicina grande parte da sua vida, parecia saber do que falava:
 
Conclusão: illa bonis consilietur amice (Para servir de conselho amistoso às boas pessoas)
 
   Bebedores ilustres! nobres indelicados! estimáveis gulosos! sondadores de jarros! Levantadores de garrafas! giradores de rolhas! intendentes da visão turva! discípulos de São Martinho! irmãos grogues! irmãos ébrios! irmãos insaciáveis e arrotadores avinhados! banqueteadores e bêbedos! os que batem os dentes e os que dão à língua! grandes glutões! barrigas bojudas! flatulentos e cobardes! irmãos loucos e mui prezados! Em conclusão, notem bem o seguinte: se desejam conservar, ao longo da vida, a saúde e a elegância, escutem atentamente estas seis regras:
   Nunca bebam sozinhos. A companhia de bebedores é algo de altamente estimável e as suas palavras tonitruantes têm um peso considerável nos círculos policiais. Mais ainda: vejam dois bêbedos; se um deles, com a vista completamente turva, tropeçar, o outro levantá-lo-á.
   Ora bem: ao romper da aurora, ao luar virginal da alvorada, o melhor é brindarmos com Matusalém; a meio do dia com Baltasar; ao crepúsculo bebamos a nossa garrafa à saúde de Nabucodonosor. (Referência às capacidades dos vasilhames vinários: Matusalém, 6 litros; Baltasar, 12 litros; Nabucodonosor, 15 litros).
   Não bebam senão do melhor. Bebam do de confiança. Plínio incita-nos a distinguirmos os vinhos imbecis dos vinhos válidos: os malandros preferirão os segundos. Tenham cuidado com a água-pé e com os vinhos velhos. Tenham cuidado com os vinhos com pé.
   Evitem a cerveja. O poeta Bachelin chama aos bebedores de cerveja: bocas mijonas; e afirma, com justeza, que uma tal beberragem é boa para os flamengos e os alamanos, dado que possuem almas vulgares. E beber cerveja provoca maleitas: Júlio, o Santo Padre, bebia cerveja e, por lhe crescer a barba, provocou grande indignação. Por esse motivo, também Erasmo de Roterdão afirma que a cerveja deve ser infligida aos perdidos e aos apóstatas, dado que é um castigo bastante duro, assim seja a falta suficientemente pesada.
   Mas, mais do que tudo, evitem a água: de todos os fluídos, é o mais virulento. Imensos poetas e lasquenetes sucumbiram, lamentavelmente, em virtude desta. A água causa danos enormes, devido às suas fetidez e pestilência; Aristóteles, na sua História dos Animais, narra como um grande número de gafanhotos, tendo sido regados com água, se depravavam e, através da sua horrível pestilência, abateram oitenta mil pessoas na cidade de Azi. E os membros da congregação da Santa Sé sabem bem o que fazem quando deitam, através de um funil, água nas tripas heréticas: dado que quem bebe água tem sempre qualquer coisa a esconder e oculta em si alguma obscenidade.
   Pois bem! Aprendamos com o ensinamento de Jesus Cristo em Caná, com o amável milagre do Cordeiro.
   Evitem, também, o sangue, O sangue é pernicioso para o corpo humano, do que dão testemunho imensos escritos e opúsculos médicos, e o charlatão Avicena, também ele, recomenda a prática abundante de sangrias. Reconhecemos que o sangue é um fluído gravemente nefasto em virtude de jorrar e escorrer mal se pica alguém com um punhal: dado que o corpo humano aproveita a menor ocasião para se desfazer desse veneno; e Manardi de Ferrara ensina-nos que devemos ouvir aquilo que o corpo nos ordena, dado que o Espírito Santo nos fala através dele. Eis a razão porque, erguendo o seu cálice, o Salvador diz: “Este é o meu sangue”, o que prescreve que troquemos todo o nosso sangue por vinho, já que um expulsa o outro; e seremos saudáveis e adoraremos Deus com fervor: Agios kathanatos ho Teos. (Deus é santo e imortal.)
    E escutem! Fiquem, ainda, sabendo o seguinte: têm a vida inteira para se rirem, e toda a morte para descansarem.
 
 
Quem conheça o primeiro romance de Rabelais, saberá que Pantagruel, filho do gigante Gargântua, órfão à nascença de Badebec, tinha um apetite voraz. É, de resto, característica comum a muita da literatura picaresca da época, como forma de sublinhar a enorme disparidade entre a fome que grassava entre o povo e os banquetes sumptuosos da nobreza. O nome Pantagruel tem origem num demónio do folclore bretão que gostava de lançar sal na boca dos bêbedos adormecidos, de modo a que eles tivessem ainda mais vontade de beber. Esta obsessão pelo vinho tem também por princípio a crença de que no vinho estava a verdade, pois através dos seus efeitos o homem libertaria a alma revelando o que nela ia. A verdade encontra-se, pois, escondida no vinho. Já o ouvido que escuta a canção da Sagrada Garrafa esconde-se por detrás da orelha amputada: tens tudo quanto é vero em ti fechado. No tempo do Autor, um decreto determinava que se amputasse uma orelha a quem exibisse embriaguez na via pública. A referência a Noé tem uma razão de ser, pois este foi o primeiro a cultivar vinha e a vindimar. Além do mais, era consumidor de vinho. Certo dai embebedou-se e ficou todo nu dentro da tenda. Cam viu o pai nu e foi contar aos irmãos, mas Sem e Jafet aproximaram-se do pai, de costas voltadas para não o verem nu, e taparam-no. Quando Noé acordou, ao saber o que se tinha passado, amaldiçoou Canaã, filho de Cam, tornando-o escravo de Sem. Não nos esqueçamos, também, que o primeiro milagre de Jesus foi o da conversão da água em vinho durante as bodas de Caná. Não é fácil determinar o valor simbólico destas questões, sendo certo que em todos os casos o vinho surge como elemento fundamentalmente associado à verdade e à qualidade de vida.  

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