Vermelha chama de amarelos laivos
que escorrem pelas águas lagunares
à beira de uma praia esbranquiçada aonde
muralhas se reflectem nas quietas águas
em trémulos reflexos também
da borboleta azul incendiada e verde,
ó névoa de castelos, céu suspenso,
ó céu azul sombrio, ó Elsinore,
«Tens uma filha? Quenão ande ao Sol:
que ficar prenha é bênção, mas não como
pode emprenhar a tua filha. Amigo,
tem cuidado.»
Cenário, meus senhores, um céu de anil,
de tempestuosas nuvens em que um branco
prende a atenção e a praia que as muralhas
detêm no seu ventoso arripiar ligeiro
ao topo de rochedos que se escoam
como reflexos de asa ou manto real
pendendo aereamente de ombros invisíveis,
cenário, teatro: «Ó filhos indiferentes;
amei-te outrora; é breve, meu senhor;
sê casta como o gelo, pura como a neve;
que bela ideia estar metido entre
pernas de donzela!»
Pernas de donzela, ó ténues lumes
que um sopro apaga e ao contacto se abrem
do sexo túrgido incendiando os lábios
tão docemente róseos e coroados
por crespa cabeleira mais escura
que os longos, longos, os cabelos soltos!
«Ai que antes de violar-me, prometeste
casar comigo! Vem, meu coche!»
Terraços e neblinas, e muralhas turvas
e uma ansiedade colorida e crua
tão levemente insinuada a toques
de penetrada posse virginal. Ofélia!
«Enquanto uns têm de vigiar, os outros
têm de dormir. Boa noite, doce príncipe,
e que revoadas de anjos te conduzam
cantando ao teu repouso!»
Sanguineamente se dilui perdida
a borboleta ao longo de ´águas mansas.
Lisboa, 20/6/1959
Jorge de Sena, de Metamorfoses, seguidas de Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena (1963), in Poesia II, Edições 70, Novembro de 1988, pp. 117-120.
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