Esta noite sonhei que era o homem aranha. No entanto, sofria de aracnofobia. Consultei uma psicóloga e expus o caso. Ela tentou acalmar-me, explicando ser muito comum pessoas como eu enredarem-se em teias de aversões e receios. Perguntei-lhe o que pretendia dizer com “pessoas como eu”, solicitando que não voltasse a falar em teias. Respondeu-me que não queria reduzir-me a um estereótipo, até porque a classe dos super-heróis não era assim tão vulgar no nosso mundo. Discordei, falando-lhe do Superman, do António Costa Silva, do Batman, do Almirante Gouveia e Melo, do Flash e da Cristina Ferreira. Como podia constatar, não faltavam heróis neste mundo. Se eu quisesse podia passar um dia inteiro a enumerar heróis, todos super, todos impecáveis, a maioria portugueses. Mostrou-se compreensiva, escutava-me atenta e pacientemente, até ao momento de me interromper para indagar por onde lançava eu as minhas teias. Arregacei as mangas e mostrei-lhe os pulsos. Ficou impressionada. Constatou que as minhas teias eram deveras venosas, ricas em anidrido carbónico que circula até à aurícula direita do coração e sai do ventrículo direito indo pelas artérias e arteríolas na direcção dos pulmões para ser oxigenado. Quedei estarrecido com a explanação, jamais me ocorrera olhar para os pulsos daquela maneira. Disse-me que era precisamente nesse ponto que residia o meu problema, eu tinha uma auto-imagem negativa, o medo de mim mesmo advinha da falta de reconhecimento de mim próprio. Sugeriu-me que passasse a olhar para mim como um outro, de modo a superar a fobia que me atormentava. Je suis un autre, contestei, eu próprio o outro, continuei, o devir outro do ser mesmo, insisti, eu não sou quem sou, sou uma invenção de mim mesmo, ceci n’est pas une homem aranha, asseverei, apontando para os pulsos, é um homem enredado nas cercas de uma imagem projectada de si mesmo, uma sombra no interior da qual bate um coração e o sangue circula, é e não é ao mesmo tempo, digamos, como o crepúsculos e as zonas cinzentas e todas essas coisas que são uma coisa e o seu contrário, o Yin e o Yang mas já sem enes, só yiyags, yis e yas e gs, tudo misturado, tudo confundido, tudo confodido. Ela rogou que regressássemos ao essencial, a minha aracnofobia, com a voz trémula e titubeante rogou que regressássemos à minha aracnofobia, que eu tinha de me aceitar como homem aranha independentemente de o ser ou não ser — isso é Hamlet, Shakespeare, corrigi —, se desejava tratar-me tinha de me aceitar como era, super-herói ou não, pouco interessava, porque uma pessoa é a imagem que constrói de si mesma, o ser, na realidade, não existe, é um abstracto que vai sendo moldado na nuvem pelo algoritmo da razão, somos todos mais o que julgamos ser do que aquilo que na realidade somos, a realidade nem sequer é coisa que seja, vai sendo e nós construímo-nos nesse ir sendo com os outros que somos nós próprios e… Interrompia-a. Pedi-lhe calma. A geometria da teia estava a ficar intrincada. Perguntei-lhe, cordialmente, se estaria bem, se precisava de ajuda. Parecia-me exausta, não dizia coisa com coisa, talvez pudéssemos sair e abraçar umas árvores. O problema era se tivessem aranhas. O melhor era irmos cada qual para sua casa ver tutoriais de reiki. Ela concordou. Quero dizer, concacordou.
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