Manhãzinha cedo, senti acordar-me o
sopro da voz ciciada de minha mulher:
— O Fafe telefonou de Cascais… Lisboa está cercada por tropas…
Refilo, rabugento:
— Hã?
E enrolo-me mais nos lençóis:
— É algum golpe reaccionário dos «ultras»… Deixa-me dormir.
Mas qualquer coisa começou a magoar-me a pele com dentes frios, para me dissuadir de adormecer.
E daí a instantes a minha mulher insistiu, baixinho, muito baixinho, com medo de não haver realidade:
— Só funciona o Rádio Clube que pede às pessoas que se conservem em casa.
Golpe militar? Reaccionários, evidentemente. Como se poderia conceber outra coisa?
Levanto-me preparado para o pesadelo de ouvir tombar pedras sobre cadáveres. Espreito através da janela. Pouca gente na rua. Apressada. Tento sintonizar a estação da Emissora Nacional. Nem um som. Em compensação o telefone vinga-se desesperadamente. Um polvo de pânico desdobra-se pelos fios. A campainha toca cada vez mais forte.
Agora é o Carlos de Oliveira.
— Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa?
Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso.
Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro:
— Aqui, Posto do Comando das Forças Armadas. Não queremos derramar a mínima gota de sangue.
De novo o silêncio. Opressivo. De bocejo. Inútil. A olhar para o aparelho.
Custa-me a compreender que se trate de revolução. Falta-lhe o ruído (onde acontecerá o espectáculo?), o drama, o grito. Que chatice!
A Rosália chama-me, nervosa:
— Outro comunicado na rádio. Vem, depressa.
Corro e ouço:
— Aqui o Movimento das Forças Armadas que resolveu libertar a Nação das forças que há muito a dominavam. Viva Portugal!
Também pede à Polícia que não resista. Mas Senhor dos Abismos!, trata-se de um golpe contra o fascismo (isto é: salazarismo-caetanismo).
São dez e meia e não acredito que os «ultras» não se mexam, não contra-ataquem!
Ou tudo ruirá de podre, sem o brandir de uma bandeira qualquer de heroísmo, um berro, um suicídio, um brado? Nas ruas (avisto da janela da sala de jantar) as mulheres correm com sacos de alimentos. A poetisa Maria Amélia Neto telefona-me: «Não resisti e vim para o escritório.»
Os revoltosos estão a conferenciar com o ministro do Exército. Na rádio a canção do Zeca Afonso: Grândola, vila morena… Terra da fraternidade… O povo é quem mais ordena…
Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas. Ainda assisti, ainda assisti à morte deste maldito meio século de opressão imbecil. Ao mesmo tempo nunca vivi horas mais aborrecidas de espera, de frigorífico, ao som de baladas medíocres, sem lances dramáticos. E não serão assim sempre as verdadeiras revoluções?... interrogo-me. Em silêncio. Sem teatro por fora. Em segredo. Com pantufas.
De súbito, aliás, a rádio abre-se em notícias. O Marcelo está preso no Quartel do Carmo. A Polícia e a Guarda Republicana renderam-se. O Tomás está cercado noutro quartel qualquer. E, pela primeira vez, aparece o nome do general Spínola. Novo comunicado das Forças Armadas. O Marcelo ter-se-ia rendido ao ex-governador da Guiné. (Lembro-me do Salazar: «O poder não pode cair na rua.»)
Abro a janela e apetece-me berrar: «Acabou-se! acabou-se finalmente este tenebroso e ridículo regime de sinistros Conselheiros Acácios de fumo que nos sufocou durante anos e anos de mordaças. Acabou-se. Vai recomeçar tudo.»
A Maria Keil telefonou. O Chico está doente e sozinho em casa. Chora. (Nesta revolução as lágrimas são as nossas balas. Mas eu vi, eu vi, eu vi!...)
Antes de morrer, a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhes restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias.
Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos… alguns torturados durante dias e noites sem fim… não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança.
E o telefone toca, toca, toca… Juntámos as vozes na mesma alegria. (Só é pena que os mortos não nos possam telefonar da Morte: o Bento de Jesus Caraça, o Manuel Mendes, o Casais Monteiro, o Redol, o Edmundo Bettencourt, o Zé Bacelar, a Ofélia e o Bernardo Marques, o Pavia, o Soeiro Pereira Gomes e outros, muitos, tantos… Tenho de me contentar com os vivos. Porque felizmente dos vivos poucos traíram ou desanimaram. Resistimos quase todos de unhas cravadas nas palmas das mãos…)
De repente, estremeço, aterrado.
Mas isto de transformar o mundo só com vivos não será difícil?
Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos.
Revolução.
José Gomes Ferreira, Maio-Abril
(1968-1975).
— O Fafe telefonou de Cascais… Lisboa está cercada por tropas…
Refilo, rabugento:
— Hã?
E enrolo-me mais nos lençóis:
— É algum golpe reaccionário dos «ultras»… Deixa-me dormir.
Mas qualquer coisa começou a magoar-me a pele com dentes frios, para me dissuadir de adormecer.
E daí a instantes a minha mulher insistiu, baixinho, muito baixinho, com medo de não haver realidade:
— Só funciona o Rádio Clube que pede às pessoas que se conservem em casa.
Golpe militar? Reaccionários, evidentemente. Como se poderia conceber outra coisa?
Levanto-me preparado para o pesadelo de ouvir tombar pedras sobre cadáveres. Espreito através da janela. Pouca gente na rua. Apressada. Tento sintonizar a estação da Emissora Nacional. Nem um som. Em compensação o telefone vinga-se desesperadamente. Um polvo de pânico desdobra-se pelos fios. A campainha toca cada vez mais forte.
Agora é o Carlos de Oliveira.
— Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa?
Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso.
Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro:
— Aqui, Posto do Comando das Forças Armadas. Não queremos derramar a mínima gota de sangue.
De novo o silêncio. Opressivo. De bocejo. Inútil. A olhar para o aparelho.
Custa-me a compreender que se trate de revolução. Falta-lhe o ruído (onde acontecerá o espectáculo?), o drama, o grito. Que chatice!
A Rosália chama-me, nervosa:
— Outro comunicado na rádio. Vem, depressa.
Corro e ouço:
— Aqui o Movimento das Forças Armadas que resolveu libertar a Nação das forças que há muito a dominavam. Viva Portugal!
Também pede à Polícia que não resista. Mas Senhor dos Abismos!, trata-se de um golpe contra o fascismo (isto é: salazarismo-caetanismo).
São dez e meia e não acredito que os «ultras» não se mexam, não contra-ataquem!
Ou tudo ruirá de podre, sem o brandir de uma bandeira qualquer de heroísmo, um berro, um suicídio, um brado? Nas ruas (avisto da janela da sala de jantar) as mulheres correm com sacos de alimentos. A poetisa Maria Amélia Neto telefona-me: «Não resisti e vim para o escritório.»
Os revoltosos estão a conferenciar com o ministro do Exército. Na rádio a canção do Zeca Afonso: Grândola, vila morena… Terra da fraternidade… O povo é quem mais ordena…
Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas. Ainda assisti, ainda assisti à morte deste maldito meio século de opressão imbecil. Ao mesmo tempo nunca vivi horas mais aborrecidas de espera, de frigorífico, ao som de baladas medíocres, sem lances dramáticos. E não serão assim sempre as verdadeiras revoluções?... interrogo-me. Em silêncio. Sem teatro por fora. Em segredo. Com pantufas.
De súbito, aliás, a rádio abre-se em notícias. O Marcelo está preso no Quartel do Carmo. A Polícia e a Guarda Republicana renderam-se. O Tomás está cercado noutro quartel qualquer. E, pela primeira vez, aparece o nome do general Spínola. Novo comunicado das Forças Armadas. O Marcelo ter-se-ia rendido ao ex-governador da Guiné. (Lembro-me do Salazar: «O poder não pode cair na rua.»)
Abro a janela e apetece-me berrar: «Acabou-se! acabou-se finalmente este tenebroso e ridículo regime de sinistros Conselheiros Acácios de fumo que nos sufocou durante anos e anos de mordaças. Acabou-se. Vai recomeçar tudo.»
A Maria Keil telefonou. O Chico está doente e sozinho em casa. Chora. (Nesta revolução as lágrimas são as nossas balas. Mas eu vi, eu vi, eu vi!...)
Antes de morrer, a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhes restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias.
Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos… alguns torturados durante dias e noites sem fim… não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança.
E o telefone toca, toca, toca… Juntámos as vozes na mesma alegria. (Só é pena que os mortos não nos possam telefonar da Morte: o Bento de Jesus Caraça, o Manuel Mendes, o Casais Monteiro, o Redol, o Edmundo Bettencourt, o Zé Bacelar, a Ofélia e o Bernardo Marques, o Pavia, o Soeiro Pereira Gomes e outros, muitos, tantos… Tenho de me contentar com os vivos. Porque felizmente dos vivos poucos traíram ou desanimaram. Resistimos quase todos de unhas cravadas nas palmas das mãos…)
De repente, estremeço, aterrado.
Mas isto de transformar o mundo só com vivos não será difícil?
Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos.
Revolução.
1 comentário:
Esses tais que "não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança" seriam hoje pró-ditadura... Como é falacioso, senão obsceno (idiota??) esta lógica atual.
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