Pseudónimo literário de José Emílio de Oliveira Marmelo e Silva,
economista de formação, filho do escritor José Marmelo e Silva, José
Emílio-Nelson (Espinho, 1948) estreou-se na poesia, em 1979, com o
livro “Polifonia”. Em 2004, reuniu pela primeira vez a sua Obra Poética no
volume “A Alegria do Mal” (Quasi Edições), compilando vinte e cinco anos de
produção. Na introdução a esse volume, Luís Adriano Carlos referiu-se a uma
poesia do feio e do mal, da luxúria e do deboche, provocatória e dotada de
sofisticação. Situando as suas referências numa genealogia heteróclita e
maldita, Emílio-Nelson voltou a reunir a obra num volume de 700 páginas
intitulado “Beleza Tocada (Obra Poética 1979-2015)” (Abysmo, 2016). O formato
bíblia, em tom roxo, símbolo de penitência e de serenidade na Igreja Católica
Apostólica Romana, é uma óbvia provocação que não escapará a quem esteja
familiarizado com a voz deste poeta que é das mais singulares e exigentes da poesia
portuguesa contemporânea.
O Autor de “Penis, Penis” (1980) incorpora na sua poesia tudo quanto por regra social e culturalmente herdada dizemos repugnante. Logo no livro inicial, um complexo lexical composto por vísceras, macerações, pederastas, enfermidades, vestes purulentas, latrinas fétidas, bolor e urina, introduziu-nos num universo heterodoxo do qual não se afastou um milímetro ao longo das décadas subsequentes. A heresia e a blasfémia são marcas que assumiu como suas em poemas que ora dramatizam a relação da virtude com o vício, do Paraíso com o Inferno, da moralidade com a imoralidade, ora satirizam o lugar intermédio do homem nesse campo de batalha onde o Bem se trava de razões com o Mal. São poemas que expurgam uma herança cultural pesada interpelando a sua raiz e dialogando com uma vasta miscelânea de criadores que atravessam diversas artes, da poesia à pintura, desta ao cinema, passando pela música.
Ler “Beleza Tocada” de fio a pavio é como entrar num museu e percorrer-lhe as galerias, mas nunca deixando de penetrar bem fundo nesses outros corredores a céu aberto em que a vida quotidiana se mostra sem recurso a mediações. Prostitutas, drogados, dejectos, cenas burlescas, grotescas, bizarras, tingem de realidade uma paisagem que, a espaços, poderia parecer exclusivamente literária se não tivesse os seus fundamentos na experiência vivida e observada. De resto, o título “Vida Quotidiana e Arte Menor” (1990) para isso mesmo aponta, para essa panorâmica ampla em que o erudito se mistura ironicamente com o vulgar. Por isso falamos do feio a propósito de Emílio-Nelson da mesma forma que falamos do belo a propósito de outros poetas. A problemática do feio, no entanto, coloca-se também aqui a partir de uma dúvida acerca do que possa ser o belo. O próprio título “Beleza Tocada” remete para uma aparente contradição entre o ideal (belo) e o material (toque), sendo o primeiro formado e formatado pela razão e o segundo resultado da percepção sensorial. Mente e carne conjugam-se nesse título e ao longo de uma obra que assume o humano integralmente, não se restringindo apenas a uma das suas dimensões.
Deste modo, «A Beleza é a infâmia, a mancha imprecisa que abala o coração» (p. 361). «Em que balança pesas o Belo?» — pergunta-se no poema “Lições Anteriores” (p. 437). «O Belo — ranho e saliva, doirado», responde-se num verso do mesmo poema. No fundo, faz justiça ao conhecido fragmento de Novalis: «Não censures nada do que é humano; tudo é bom, embora não seja bom em todo o lado, nem sempre, nem para todos». Da mesma forma, aceita-se a tese do autor alemão segundo a qual a descida ao núcleo do humano corresponde a uma ascensão que permite contemplar o verdadeiro exterior. Novalis não será, porém, o interlocutor mais evidente nesta poesia. Esses são Sade, Goya, Quevedo, Boccaccio, Ovídio, Mantegna, Gil Vicente, Bocage, Baudelaire… Leia-se “Os Céus e a Terra de Mantegna” (p. 115) para melhor se entender quais as chaves deste universo.
A estirpe desta poesia é a de um combate feroz ao poder amestrador da Igreja, nomeadamente no que concerne à negação do corpo, à censura do desejo, à condenação do sexo. A sexualidade explícita, amiudadamente próxima da pornografia, como nas fotografias de Robert Mapplethorpe (excelente, o poema a “Lady Lisa Lyon”), é aqui um contra-ataque à hipocrisia do sexo obnubilado pela noção de pecado. Assumir o homem pleno implica assumir a sua animalidade instintiva, a qual dizemos infame, bárbara, selvagem, cruel, por absoluto desespero. Arte poética pode ser o poema “O Último Restauro” (p. 44) ou o “Epitáfio” (p. 64) que se refere a um «poeta excremental», podem ser os dois últimos versos de “Arte Poética Segunda” (p. 163) — «Ele é a beleza pela loucura tenaz que a desfeia. / Ele é o riso como raiz da tristeza.» — ou o remate de “Anger” (p. 286), um dos pecados mortais, que nos desloca para a pintura de Brueghel: «A Ira, a ira é redonda como pétala de rosas caídas de um tosco poeta / Escudado em poética tosca, de seu gosto.»
Três figuras, para não sermos exaustivos, percorrem insistentemente esta poesia. Primeiro, a figura da mulher: por associação ao pecado de que foi vítima ao longo dos séculos — «Bem haja, meu Deus, a mulher» (p. 29) —, como objecto de contemplação, agora não apenas de desejo mas também enquanto constatação de uma degenerescência do inato — «Já não distingo uma mulher / Dum plástico de insuflar» (p. 460) — e, por fim, como “Insinuação Misógina” (p. 649) — «Não há mulher de idade feliz. / Amargas na amargura, todas.»
Depois, a figura do cão. O cão doméstico, o cão vadio, o cão sarnento, o cão que remexe o lixo, o cão enquanto projecção efabulada do homem subjugado, o cão das mitologias, subterrâneo, infernal, sexual, o cão que fode à cão, o cão que cheira os cus dos outros cães e fareja os excrementos. Sublinhe-se “A Alma Repleta de Cães” (p. 377) ou os cães do conjunto intitulado “Magistério” (505). A par do cão, acrescentem-se o escaravelho (curiosamente, ambos sagrados no antigo Egipto), o cavalo e o veado, à maneira de vértices nesta quadratura de um bestiário satânico.
Por fim, a figura da morte. Esta é, definitivamente, uma poesia estigmatizada por uma ideia de morte que pode ser resumida num verso do poema “Leio Mal” (p. 673): «Que trampa sabermos que somos um pavio a arder.» É esta consciência da finitude que mina o terreno vivo do sátiro e do bufão, impelindo-o para bacanais e orgias que mais não são do que uma vontade de viver a desmesura até nada sobrar que possa interessar à Terra. Gastar a carne transmutando-a em palavras, isto é, a escrita também aqui nesse sentido de morte que se nega a si mesma inscrevendo-se sob a forma de poema. É a proposta desta poesia que elipticamente se revela no final, tendendo já para o silêncio como um corpo gasto que se deteve no campo por si mesmo minado da luxúria e do pecado:
QUE É A?
……………………………………………………..
(É a velhice a ver-se alva, a estranhar que o viver
aloja o morrer.)
(É o malhar das ceras num Ícaro
amputado. E irá ao Sol.)
(É o corpo, merdante, o oleiro de outra
pastada no fazer de versos.)
É poesia, não suspires a asfódelos <,
e se a lês a?>.
(A fodere? — pergunta a Escolástica.)
……………………………………………………..
É poesia quando no dantesco da nossa vida
O eco do Louco se alouca à Língua.
O Autor de “Penis, Penis” (1980) incorpora na sua poesia tudo quanto por regra social e culturalmente herdada dizemos repugnante. Logo no livro inicial, um complexo lexical composto por vísceras, macerações, pederastas, enfermidades, vestes purulentas, latrinas fétidas, bolor e urina, introduziu-nos num universo heterodoxo do qual não se afastou um milímetro ao longo das décadas subsequentes. A heresia e a blasfémia são marcas que assumiu como suas em poemas que ora dramatizam a relação da virtude com o vício, do Paraíso com o Inferno, da moralidade com a imoralidade, ora satirizam o lugar intermédio do homem nesse campo de batalha onde o Bem se trava de razões com o Mal. São poemas que expurgam uma herança cultural pesada interpelando a sua raiz e dialogando com uma vasta miscelânea de criadores que atravessam diversas artes, da poesia à pintura, desta ao cinema, passando pela música.
Ler “Beleza Tocada” de fio a pavio é como entrar num museu e percorrer-lhe as galerias, mas nunca deixando de penetrar bem fundo nesses outros corredores a céu aberto em que a vida quotidiana se mostra sem recurso a mediações. Prostitutas, drogados, dejectos, cenas burlescas, grotescas, bizarras, tingem de realidade uma paisagem que, a espaços, poderia parecer exclusivamente literária se não tivesse os seus fundamentos na experiência vivida e observada. De resto, o título “Vida Quotidiana e Arte Menor” (1990) para isso mesmo aponta, para essa panorâmica ampla em que o erudito se mistura ironicamente com o vulgar. Por isso falamos do feio a propósito de Emílio-Nelson da mesma forma que falamos do belo a propósito de outros poetas. A problemática do feio, no entanto, coloca-se também aqui a partir de uma dúvida acerca do que possa ser o belo. O próprio título “Beleza Tocada” remete para uma aparente contradição entre o ideal (belo) e o material (toque), sendo o primeiro formado e formatado pela razão e o segundo resultado da percepção sensorial. Mente e carne conjugam-se nesse título e ao longo de uma obra que assume o humano integralmente, não se restringindo apenas a uma das suas dimensões.
Deste modo, «A Beleza é a infâmia, a mancha imprecisa que abala o coração» (p. 361). «Em que balança pesas o Belo?» — pergunta-se no poema “Lições Anteriores” (p. 437). «O Belo — ranho e saliva, doirado», responde-se num verso do mesmo poema. No fundo, faz justiça ao conhecido fragmento de Novalis: «Não censures nada do que é humano; tudo é bom, embora não seja bom em todo o lado, nem sempre, nem para todos». Da mesma forma, aceita-se a tese do autor alemão segundo a qual a descida ao núcleo do humano corresponde a uma ascensão que permite contemplar o verdadeiro exterior. Novalis não será, porém, o interlocutor mais evidente nesta poesia. Esses são Sade, Goya, Quevedo, Boccaccio, Ovídio, Mantegna, Gil Vicente, Bocage, Baudelaire… Leia-se “Os Céus e a Terra de Mantegna” (p. 115) para melhor se entender quais as chaves deste universo.
A estirpe desta poesia é a de um combate feroz ao poder amestrador da Igreja, nomeadamente no que concerne à negação do corpo, à censura do desejo, à condenação do sexo. A sexualidade explícita, amiudadamente próxima da pornografia, como nas fotografias de Robert Mapplethorpe (excelente, o poema a “Lady Lisa Lyon”), é aqui um contra-ataque à hipocrisia do sexo obnubilado pela noção de pecado. Assumir o homem pleno implica assumir a sua animalidade instintiva, a qual dizemos infame, bárbara, selvagem, cruel, por absoluto desespero. Arte poética pode ser o poema “O Último Restauro” (p. 44) ou o “Epitáfio” (p. 64) que se refere a um «poeta excremental», podem ser os dois últimos versos de “Arte Poética Segunda” (p. 163) — «Ele é a beleza pela loucura tenaz que a desfeia. / Ele é o riso como raiz da tristeza.» — ou o remate de “Anger” (p. 286), um dos pecados mortais, que nos desloca para a pintura de Brueghel: «A Ira, a ira é redonda como pétala de rosas caídas de um tosco poeta / Escudado em poética tosca, de seu gosto.»
Três figuras, para não sermos exaustivos, percorrem insistentemente esta poesia. Primeiro, a figura da mulher: por associação ao pecado de que foi vítima ao longo dos séculos — «Bem haja, meu Deus, a mulher» (p. 29) —, como objecto de contemplação, agora não apenas de desejo mas também enquanto constatação de uma degenerescência do inato — «Já não distingo uma mulher / Dum plástico de insuflar» (p. 460) — e, por fim, como “Insinuação Misógina” (p. 649) — «Não há mulher de idade feliz. / Amargas na amargura, todas.»
Depois, a figura do cão. O cão doméstico, o cão vadio, o cão sarnento, o cão que remexe o lixo, o cão enquanto projecção efabulada do homem subjugado, o cão das mitologias, subterrâneo, infernal, sexual, o cão que fode à cão, o cão que cheira os cus dos outros cães e fareja os excrementos. Sublinhe-se “A Alma Repleta de Cães” (p. 377) ou os cães do conjunto intitulado “Magistério” (505). A par do cão, acrescentem-se o escaravelho (curiosamente, ambos sagrados no antigo Egipto), o cavalo e o veado, à maneira de vértices nesta quadratura de um bestiário satânico.
Por fim, a figura da morte. Esta é, definitivamente, uma poesia estigmatizada por uma ideia de morte que pode ser resumida num verso do poema “Leio Mal” (p. 673): «Que trampa sabermos que somos um pavio a arder.» É esta consciência da finitude que mina o terreno vivo do sátiro e do bufão, impelindo-o para bacanais e orgias que mais não são do que uma vontade de viver a desmesura até nada sobrar que possa interessar à Terra. Gastar a carne transmutando-a em palavras, isto é, a escrita também aqui nesse sentido de morte que se nega a si mesma inscrevendo-se sob a forma de poema. É a proposta desta poesia que elipticamente se revela no final, tendendo já para o silêncio como um corpo gasto que se deteve no campo por si mesmo minado da luxúria e do pecado:
(É a velhice a ver-se alva, a estranhar que o viver
aloja o morrer.)
É poesia quando no dantesco da nossa vida
O eco do Louco se alouca à Língua.
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