sábado, 16 de abril de 2022

TRÊS POEMAS EM PROSA DE JUAN GELMAN

 


O CEGO
 
Nada ponhas diante do cego que o faça tropeçar. Ele envergonha-se da sua causa e apenas busca um lugar na vida oleosa, em ambiente raivoso ou gorduroso, para andar às voltas do poço palpitante. Que ganhará com isso além de ofegantes ninguéns? O cego viu o que não aconteceu. Tem reversos de animal e grunhe entre a espada e a parede do nada possível.
 
 
RETRATO
 
Ninguém deve perturbar o coração secreto. Amo as aparências do não ser natural. O verdadeiro em nada se assemelha ao espelho que envenena as faces do desejo, faz da memória um corpo foragido da unidade. Estou cheio e vazio de mim mesmo desde que nasci e assim sei que a verdade mais inocente é um destino.
 
 
YOUNG VENITIAN LADY’S DÜRER PORTRAIT REVISITED
 
Regressei para ver a jovem veneziana que me mostrou o consolo do amor. É imortal e docemente me magoa. Está entregue a uma atmosfera que jamais se me abrirá. Faz séculos que tive um sonho nos seus lábios. Mantém-se intacto. Ela aí o deixou e aí permanece, inacessível a mim que o sonhei.
 
Juan Gelman, in Salarios del impío y otros poemas (1998).
Versões de HMBF.

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