Perante o objecto várias hipóteses se colocam: o silêncio talvez seja a mais avisada, a descrição é inútil, a interpretação resulta de uma invenção que de algum modo atraiçoa o objecto. Mas interpretar não é propriamente inventar o que não está, é antes criar sobre o que está. Tomemos de exemplo este trabalho de José Maria Bustorff, outrora Jochen Maria Bustorff, da exposição intitulada «José Afonso, seus amigos e outras telas de intervenção» (Pombal, Fevereiro-Maio de 2022).O que salta à vista, desde logo nas margens, são representações de personalidades políticas contemporâneas mais ou menos identificáveis: Bashar al-Assad, Erdoğan, Benjamin Netanyahu e António Guterres do lado esquerdo; Putin, Ali Khamenei, Papa Francisco e Abu Musab al-Zarqawi do lado direito. Repare-se no modo como a composição adopta a disposição do conjunto, quatro telas organizadas porventura à laia de pontos cardeais. Tanto os homens do oeste como os de este têm o dedo indicador levantado e hirto, não como quem pede para falar, mas como quem acusa ou impõe uma posição. Aviso? Advertência? Ameaça? A excepção é Guterres, que, com as duas mãos erguidas e um rosto suplicante, parece mendigar ponderação, ou talvez união onde a regra é desunir. São figuras de um tempo histórico concreto. Daqui a uns séculos deixarão de ter nome, cairão no esquecimento, o que as define é a posição das mãos e os trajes de político ou de líder religioso. Qualquer pessoa saberá identificar nelas representações possíveis do poder. Depois há os aviões militares, a verde, como varejeiras, o helicóptero, blindados, a força dos exércitos concentrada a norte, sobrevoando o povo anónimo disposto a sul. O cenário é de guerra, de conflito, de angústia, de confusão. A ausência de vermelho cor de sangue demove qualquer tipo de propósito sensacionalista. O fundo é ocre como o dos mapas demográficos, tudo gira em torno daquela citação central de “O grito”, de Edvard Munch. Mas o que mais me atingiu neste trabalho não foi nada do que acabei de descrever fugaz e toscamente, o que mais me impressionou foi a concentração de branco em torno do grito, da figura indígena a lembrar, pelas formas, uma das mulheres de Gauguin, do recém-nascido no berçário. Afastando-me, esse branco forma como que dois pulmões. E aí eu vejo o sistema respiratório da humanidade atacado por vírus, vejo uma radiografia do tórax planetário e as manchas que aparecem nos pulmões transformam-se em indicadores de tumores cancerígenos. Isto que eu vejo está lá sem estar, resulta da minha interpretação, é um modo de ver que acrescenta à obra realizada um pouco de nós. O silêncio talvez fosse a hipótese mais avisada. Ou talvez não. O próprio quadro, a composição, curiosa e paradoxalmente, é também ele/ela uma invenção sobre o criado. No fundo, o que neste trabalho surge representado é a razão de ser do grito, o motivo do desespero, a raiz da angústia. Nesse sentido, a expressividade é talvez a sua maior força. Como se tivesse entrado pela boca de quem grita e, chegando à garganta, compreendesse os motivos que agitam com tamanha energia as cordas vocais do desespero.
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