quinta-feira, 12 de maio de 2022

NICOLAU MAQUIAVEL

 

   Maquiavel. Quem foi o homem por detrás do nome que o tempo transformou numa etiqueta, adjectivo de tudo quanto consideramos amoral e ignominioso? Sabemos que nasceu no dia 4 de Maio de 1469 em Florença, terceiro de quatro irmãos. Duas raparigas e dois rapazes foi o que tiveram Bernardo Machiavelli e Bartolomea d’Nelli, progenitores de uma linhagem sem raízes de monta num tempo em que os apelidos pesavam e contavam mais do que hoje seria suposto contarem. «Pigmeus que somos, atacamos gigantes», declarou Nicolau a propósito de uma dessas contendas entre famílias florentinas. O pai chegou a exercer o cargo de jurista, antes de cair em desgraça sob denúncia anónima de bastardia.
   A Itália era um país dividido, partido em cinco principais centros de poder — Veneza, Milão, Florença, os Estados Pontifícios (ou papais) e Nápoles — entregues a casas poderosas que pagavam aos condottieri (mercenários) para serem defendidas e por elas fazerem novas conquistas. Em Florença dominava a oligarquia médiciana, antes de Carlos VIII de França a ter ocupado em 1494 obrigando à fuga de Pedro de Médicis. Maquiavel crescera entre a cidade e o campo, tivera uma educação modesta, mas rodeada de livros. O pai investia nas obras e na sua encadernação grande parte dos poucos rendimentos que auferia, pelo que o jovem Maquiavel se entretinha a fazer cópias de Lucrécio e a transcrever ou resumir peças do teatro latino antigo.
   É importante referir, a despeito da oligarquia governamental então em voga, o papel exercido por Lourenço de Médicis no investimento de uma Florença elevada a centro cultural do mundo, protegendo escritores e artistas, impulsionando a imprensa italiana, contribuindo para um renascimento que preferia voltar-se para a Antiguidade grega e latina, a favor da secularização, em detrimento da escolástica. Lourenço não só acolhia artistas, filósofos e literatos na sua corte, como participava activamente nas discussões e escrevia poesia. Morreu em 1492, sendo sucedido por Pedro.
   A chegada de Carlos VIII a Itália, com um exército de cerca de 40000 homens, e a facilidade com que domina Florença, ofereceu a Maquiavel a visão de um país impreparado para a guerra, fragmentado em cidades-Estado protegidas por condottieri movidos por interesses duvidosos. É o advento da república em Florença, cidade marcada pela presença do dominicano Jerónimo Savonarola. A fama de profeta ganhou-a com visões em que predizia o futuro e o futuro foi-lhe amistoso como defensor da república. Maquiavel não nutria de estima pela figura do padre, como, de resto, não nutria de simpatias pela Igreja no geral, mas reconhecia-lhe a defesa de uma Itália unificada. Considerava-o um manipulador que se adaptava às circunstâncias, inimigo da cultura que procurava reduzir a cinzas com as suas famosas fogueiras de vaidades. Obras de Dante, Boccaccio, Ovídio, Botticelli, eram queimadas nessas esconjurações.
   A morte de Carlos VIII, em Abril de 1498, precipita a morte de Savonarola, no mês seguinte, preso sem resistência, submetido ao suplício da estrapada, enforcado e queimado na praça Signoria, «após ter afirmado que Deus lhe concederia a graça de passar sem ferimentos pelo meio do fogo». O fogo não perdoou. Maquiavel tem quase 30 anos e a sua vida está prestes a sofrer uma inflexão determinante, é surpreendentemente eleito secretário da Segunda Chancelaria de Florença. Começa por exercer o cargo dos assuntos internos, ao qual rapidamente se acumularão responsabilidades nos assuntos externos. A função de diplomata estava na moda e Maquiavel, nunca chegando exactamente a sê-lo, sem qualquer poder de decisão, acabou por ficar ao serviço da república durante 14 anos, correndo o país montado a cavalo, fazendo incursões por França e Alemanha, participando como observador e relator das coisas do mundo. Valeu-lhe a reputação de «homem sério, fiável e competente.»
   O encontro com César Bórgia será igualmente determinante. Filho do papa Alexandre VI, César prescindiu da carreira eclesiástica em favor da vida militar. Era um guerreiro temido pelos adversários, implacável a livrar-se dos inimigos, acabando por ser promovido pelo pai a gonfaloneiro (capitão de milícias profissionais) da Igreja Romana. Tacticista, estratega, começava por ganhar a confiança daqueles que pretendia eliminar para finalmente dizimá-los. Foi nele que Maquiavel encontrou inspiração para alguns dos seus escritos políticos e de doutrina militar, nomeadamente a noção de «aproveitamento da ocasião» ou sentido de oportunidade e a recusa das meias-medidas: «Força e sabedoria são, portanto, o nervo de todos os regimes que alguma vez existiram ou existirão neste mundo.»
   Em 1501, Nicolau Maquiavel casou com Marietta Corsini. Bernardo, o primeiro filho, nasceu dois anos depois. Seguiu-se Lodovico, em 1504, no ano em que Bórgia fugiu para Espanha perseguido pelo sucessor de seu pai: o papa Júlio II. Maquiavel compõe então Decennale primo, uma narrativa em verso dos acontecimentos ocorridos desde a incursão de Carlos VIII até à fuga de César Bórgia.
   Na prossecução do trabalho ao serviço do governo florentino, cruzou-se com Leonardo da Vinci. Tinha-lhe sido encomendada a construção de diques com o propósito de desviar o curso do Arno, a fim de tornar possível a reconquista de Pisa por Florença. Os conflitos continuaram, com avanços e recuos, as tarefas diplomáticas foram ora bem, ora mal sucedidas, e no final de 1510 encontramo-lo a redigir aquela que virá a ser a sua única obra publicada em vida, o diálogo A Arte da Guerra (1521).
   A Arte da Guerra foi um verdadeiro best-seller, com 23 edições no século XVI, objecto de plágios e contrafacções, como à época era comum acontecer às obras de maior sucesso. Dois anos passados, tudo mudou para Maquiavel. Infelizmente para ele, ainda bem para nós. O papa alia-se a Veneza e a Espanha contra os franceses, o governo republicano de Florença cai e os Médicis regressam à cidade. Maquiavel é destituído das funções que ocupava, sendo posteriormente acusado de prevaricação e, já no início de 1513, de conspirar contra os Médicis. Submetido a tortura — «seis rasgões de corda destinados a deslocar-lhe os membros» —, resiste estoicamente: «Quero que os meus tormentos vos dêem pelo menos o prazer de saber que os suportei tão firmemente quanto gosto de mim mesmo e creio ser superior ao que pensava.» Defende-se com poemas junto dos Médicis, escapando assim à prisão perpétua. Juliano ordena-lhe o exílio na residência rural, o domínio de Sant’Andrea in Percussina. Ao mesmo tempo, João é eleito papa com o nome de Leão X.
   É neste clima que Nicolau Maquiavel conceberá aquelas que consideramos hoje as suas obras mais importantes, nomeadamente O Príncipe (dedicado a Lourenço de Médicis), publicado postumamente, em Roma e Florença, no ano de 1532, colocado no Index pelo Vaticano em 1551 e aí permanecendo até 1929. Os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio são também deste período. Alterna a escrita com a caça, partidas de gamão, momentos de isolamento nos bosques a ler Dante, Petrarca, Ovídeo. Nunca perderá a paixão pelos assuntos de Estado, e a eles regressará desempenhando funções menores. O reconhecimento nas letras conhecê-lo-á através do teatro, nomeadamente com as peças A Mandrágora e Clizia: «Tanto no teatro como na reflexão política, Maquiavel deu provas de uma relação ambivalente com a cultura humanista: conhece-a, aprecia-a e inspira-se nela, mas sabe também libertar-se e cultivar com ela uma certa distância.»
  A peça A Mandrágora, de que sobra apenas um manuscrito datado de 1519, terá sido concebida para uma festa ou celebração, granjeando sucesso imediato. Apareceu pela primeira vez em 1518, precisamente na cidade de Florença, sob o título Commedia di Callimaco e Lucrezia, sendo aí apresentada por diversas ocasiões em cenários concebidos por Bastiano da San Gallo e pintados por Andrea del Sarto. Foi igualmente representada em Veneza, Bolonha e Roma. O sucesso foi tal que lhe encomendaram outra peça, tendo assim surgido Clizia. São comédias que Maquiavel aproveita «para beliscar a Igreja, retratando padres ávidos e pouco interessados na virtude dos seus rebanhos.» A actriz Barbara Salutati, que cantava nos entreactos musicais, é a nova amante do autor. Maquiavel volta a ter a aprovação dos Médicis e retoma alguns trabalhos ao serviço da cidade. No entanto, recusa uma proposta para se tornar secretário da república de Ragusa em 1521. Florença falava mais alto, mesmo que em funções mais baixas.
   Alexandre e Hipólito de Médicis assistem à representação de Clizia na propriedade de Jacopo Falconetti. As pazes com a família todo-poderosa de Florença estão feitas e em 1525 parte para Roma com a missão de apresentar a Clemente VII A História de Florença que lhe haviam encomendado. É o historiógrafo oficial da cidade. «Ao relatar a sua missão junto dos monges franciscanos de Carpi, pôde declarar a Francesco Guicciardini, não sem alguma fanfarronice, que se tornou mestre na arte da mentira: «Há muito tempo que nunca digo o que creio e nunca creio no que digo, e se por vezes me escapa algum pingo de verdade, escondo-o debaixo de tantas mentiras que é difícil de a encontrar.»
   É assim Maquiavel, astuto e hábil, observador nato das circunstâncias e crítico acérrimo da Igreja, corajoso e, sem dúvida alguma, de convicções fortes, entre as quais a de que uma Itália unificada, capaz de fazer frente aos invasores, só seria possível com um exército de homens que lutassem mais por devoção à liberdade do que pelo dinheiro. Morreu em 1527, com 58 anos, de dores de barriga causadas por um medicamento. «Os seus últimos discursos, se é permitido acreditá-lo, foram da última impiedade. Dizia que preferia estar no Inferno com Sócrates, Alcibíades, César, Pompeu e os outros grandes homens da Antiguidade, que no Céu com os fundadores do cristianismo.»

A partir de Marie Gaille-Nikodimov, Maquiavel, tradução de Pedro Elói Duarte, Edições 70, Outubro de 2008.

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