Da revista “Orpheu”,
marco do modernismo português, guardamos os poemas de Mário de Sá-Carneiro e de
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos incluído). Almada publicou “Frizos”, as
prosas, no primeiro número. E os outros? Que é feito deles? O brasileiro Ronald
de Carvalho não entra nas contas, Alfredo Pedro Guisado caiu no esquecimento,
Armando Côrtes-Rodrigues teve semelhante sorte. Lá vamos ouvindo falar de Ângelo
de Lima, por razões nem sempre as melhores ou exclusivamente literárias. Eduardo
Guimarães, outro brasileiro, quem era? Luís de Montalvor, alguém o lê? Pessoa
esmagou o que era e veio a seguir. Até Sá-Carneiro, que bem merecia ser lido
mais à luz de si mesmo. Há um trabalho contra o esquecimento a ser feito.
Desenterrar um poeta ou outro artista qualquer das valas comuns do olvido não é
tarefa fácil, exige um labor de translação com horas de arqueologia a varrer poalha
e a partir pedregulhos. Não é coisa que se faça por mero gozo, é preciso
dedicação e, sobretudo, uma forte ligação às ossadas do morto. Num poeta, as
ossadas são os versos, as palavras disseminadas por papéis velhos com tinta
gasta, são os manuscritos, os dactiloscritos, as publicações colectivas, os
livros individuais. O poeta Nuno Dempster e a investigadora Anabela Almeida
meteram mãos à obra de Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971) e organizaram-lhe a
poesia num generoso volume de 270 páginas intitulado “Um Poeta Rodeado de Mar”
(Companhia das Ilhas, Agosto de 2021). Lá estão os poemas publicados em “Orpheu”,
em nome próprio no primeiro número e sob o pseudónimo de Violante de Cysneiros
no segundo, mais os que ficaram por sair no terceiro e outros da mesma época.
Desses, pouco haverá a dizer além de que traçam as linhas gerais de uma obra
desenvolvida posteriormente com muito mais modernidade do que a exposta na
revista editada por António Ferro. Do poema “Outro” talvez se possa dizer ser o
exemplo maior do que ali havia de modernista, a fragmentação do sujeito e o Eu
a estilhar-se em reflexos: «O meu Ser é Não-Ser em Outro-Ser» (p. 24). De certo
modo, o processo adquire outra consistência nos “Poemas de um anónimo ou
anónima que diz chamar-se Violante de Cysneiros”, nomeadamente nesse curioso
soneto do próprio ao próprio-outro que dá pelo título “Ao Sr. Armando
Côrtes-Rodrigues”: «Só em Mim me concretizo, / E o Sonho da minha Vida / Nesse
Sonho o realizo.» A brincadeira não fica por aqui. Logo de seguida temos um
poema da própria-outra à própria: «Mas os meus dedos em i / Dizem a longa
distância / Que vai de Mim para Ti.» Eram exercícios comuns à época que pegaram, a ponto de hoje se falar no sujeito poético como quem se
refere a uma identidade completamente separada do autor. Este limita-se a frequentar
festivais e feiras em representação do sujeito poético, que não come nem bebe e
raramente chega a viver. Côrtes-Rodrigues viveu, de tal modo que a melhor da
sua poesia é precisamente aquela que reflecte essa ligação ao espaço geográfico
onde semeou uma existência solitária e cultivou a tristeza dela procedente. Insularidade,
no seu caso, como noutros, aliás, é sinónimo de exílio, espiritual e físico. Espiritual
a ponto de logo no “Em louvor da humildade” (1924) percebermos a devoção por
Francisco de Assis nos poemas sóbrios, temperados, frugais, advogando uma simplicidade
moral projectada tanto nas formas tradicionais como na figura do poeta eremita:
«É a lição da humildade / Junto da minha pobreza» (p. 61). Nos sonetos de “Cântico
das Fontes” (1932) a palavra solidão impõe-se enquanto substância desse eremitismo
que tem tanto de voluntário como de involuntário. É a solidão dolorosa do
exílio na ilha, acompanhada, porém, de uma não tão angustiada contemplação dos
ermos silenciosos na paisagem. Tristeza, isolamento, solidão, saudade, são
temas recorrentes nesta poesia cujos versos se abrem e libertam de espartilhos
formais a partir de “Cantares da Noite” (1942). Devo dizer que o mar, a que o
poeta chama «planície inquieta», não é apenas neste caso a vastidão libertadora
ou o perigo eminente de uma força imbatível, é, antes de mais, o princípio
fundador de uma condição existencial, a do homem só: «Os homens mataram o
silêncio / porque sabiam que a tua voz só se escuta / no silêncio das grandes
noites estreladas. // Os homens mataram a Noite / porque acenderam luzes para
espancarem a treva / e a Noite fugiu para as encruzilhadas dos caminhos
solitários. // Os homens mataram o mundo / porque tiraram à terra o encanto do
desconhecido / e negaram aos marinheiros e caminhantes / a perene incerteza do
além. // Para onde fugir agora, / os que buscam o silêncio / para viverem a sua
solidão? // De que serve enredar-se no negrume da fundura dos barrancos, / se
todos os caminhos já estão percorridos / e a terra se fez pequena para a
curiosidade humana?» (p. 141) Note-se, na quarta estrofe do poema supracitado,
essa pergunta essencial que percorre, de modo ora latente, ora patente, toda a
obra de Côrtes-Rodrigues: pata onde fugir agora? O mar é, paradoxalmente, raiz
do desejo e obstáculo ao desejo, o que se compreende melhor em belíssimos
poemas de índole etnográfica tais como “Poema do Tagarete”, “Tio Entenda” ou “Sinfonia
de São Miguel”. Se não fosse também pelos outros, só por estes já teria valido
a pena ler este belíssimo livro.
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