terça-feira, 5 de julho de 2022

UM POEMA DE VICTOR OLIVEIRA MATEUS

 


IX

Da televisão escorria o desnorte de um tempo, esse emaranhado de que os necrófagos sempre tiraram partido. Eu não sou o meu tempo!, disse-te. Disse-te e as imagens continuaram escorrendo num atordoamento de coisas sem princípio nem solução. Antes serei a barreira que te protege ou dique indestrutível atrás do qual o permanecer se manterá. Sou talvez um objecto sem forma definida e que, esquecido depois numa bagageira insociável, acabará à espera numa qualquer secção de perdidos e achados. À espera, mas atento! Eu não sou o meu tempo!, confirmei. Sou apenas o vacilar de um olhar frágil, olhar que te fala, que insiste em esboçar-te caminhos, enquanto da televisão continuará escorrendo o desnorte deste tempo onde nunca estive nem estarei.

Victor Oliveira Mateus, in Negro Marfim, com prefácio de Miguel Real e posfácio de Ronaldo Cagiano, Editora Labirinto, 2015 (?), p. 20.

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