quinta-feira, 11 de agosto de 2022

UM CONTO DE SAKI

 


REGINALD SOBRE AS PREOCUPAÇÕES

   Tenho uma tia (disse Reginald) que tem preocupações. A tia não é bem tia — é uma espécie de amadora —, e as preocupações não são verdadeiras preocupações. Ela é um sucesso na sociedade, e não tem tragédias domésticas dignas de menção, pelo que adopta toda e qualquer aflição decorativa que lhe passe ao alcance, incluindo-me a mim. Assim sendo, é a antítese, ou o que queiram chamar-lhe, dessas mulheres suaves, resignadas, que, como sabemos, enfrentaram problemas na vida e passaram depois a usar palas nos olhos. É claro, gostamos delas precisamente por isso, mas devo confessar que me causam desconforto; fazem lembrar aqueles patos que continuam a adejar pela casa com forçado júbilo muito depois de lhes terem cortado a cabeça. Os patos não têm descanso. Bem, a minha tia tem um tom de cabelo que lhe assenta bem, e uma cozinheira que peguilha com os outros criados, o que é sempre de bom augúrio, e uma consciência que anda por fora durante onze meses por ano e só aparece pela Quaresma para aborrecer a família do marido, a qual está consideravelmente abaixo dos anjos, por assim dizer: com todas essas vantagens naturais — ela diz que o seu tom acobreado especial é uma vantagem natural, e não pode haver duas opiniões quanto a isso —, é evidente que tem de fornecer-se de aflições fora de casa, como aqueles restaurantes que não têm licença. O sistema tem as suas vantagens, já que uma pessoa consegue encaixar as infelicidades nos outros compromissos, ao passo que as verdadeiras preocupações têm esse mau hábito de aparecer à hora das refeições, ou quando nos vestimos, ou noutros momentos solenes. Conheci certa canária que durante meses e anos andou a tentar chocar uma família, e toda a gente achava que aquilo era um capricho inocente, tal como a venda da Baía da Lagoa, em Moçambique, que, a consumar-se, haveria de ser grande perda para as agências de imprensa, mas, um dia, o pássaro deu finalmente à luz, estava a família no meio das suas preces. Digo no meio, mas foi também no fim: ninguém consegue continuar a agradecer o pão de cada dia quando se põe a magicar no que é que se há-de dar de comida aos novos canários.
   Actualmente está num estado um pouco balcânico no que toca ao tratamento concedido aos judeus da Roménia. Pessoalmente, acho que os judeus têm qualidades estimáveis; são muito amáveis para com os seus pobres — e para com os nossos ricos. Eu juraria que, na Roménia, o custo de vida não está assim muito acima do rendimento de cada qual. Aqui, no nosso país, o problema é haver tanta gente com dinheiro para deitar fora e que parece ter ideias muito vagas sobre a forma de se desfazer dele. Por exemplo, aquele fundo para acorrer às vítimas de desastres súbitos. Mas o que é um desastre súbito? Há o caso de Marion Mulciber, que achava que conseguia jogar bridge, tal como achou certa vez que conseguia descer uma rampa de bicicleta; nessa ocasião foi parar ao hospital, agora foi para um convento — perdeu tudo o que tinha, percebe, e deu o resto ao céu. Seja como for, não podemos chamar a isso uma calamidade súbita; tudo começou quando a pobre querida Marion nasceu. Os médicos disseram na altura que não viveria mais de quinze dias, e, desde então, ela tem andado a tentar ver se os desmente. As mulheres são muito obstinadas. 
   E, depois, há a questão da educação — e não é que eu veja que, nesse capítulo, haja algo com que nos preocupemos. Ao que me parece, a educação é um assunto muito sobrestimado. Pelo menos nunca a levámos muito a sério na escola, quando faziam tudo para no-la meter pelos olhos dentro. Tudo aquilo que vale a pena saber, aprendemo-lo por nós na prática, e o resto impõe-se mais tarde ou mais cedo. A razão porque os mais velhos sabem comparativamente pouco é que têm de desaprender o muito que adquiriram pela educação antes de nós nascermos. Claro, eu acredito no estudo da natureza; como disse à Lady Beauwhistle, se quisermos uma lição de elaborada artificialidade, basta-nos observar o estudado descaso dum gato persa a entrar num salão cheio de gente, e depois pegar e praticar isso durante quinze dias. Os Beauwhistles não nasceram de sangue azul, não seis e sabe, mas vão chegando lá pelo sistema das prestações — dá-se uma entrada e paga-se o resto quando nos apetecer. Têm bom coração, e nunca se esquecem dos aniversários. Não me lembra do que é que ele era, uma coisa qualquer na City, que é de onde vem o patriotismo; e ela — bem, as roupas dela são confeccionadas em Paris, mas ela enverga-as com um forte sotaque inglês. Que magnânimo civismo da parte dela! Acho que deve ter tido uma educação muito estrita: tem tal ansiedade de fazer as coisas erradas da maneira certa! Não que isso, hoje em dia, importe muito, como eu lhe disse: sei de pessoas perfeitamente virtuosas que são recebidas em todas as casas. 

Saki, in Contos, tradução de Manuel Resende, Relógio D'Água, Junho de 2007, pp. 25-27.

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