domingo, 7 de agosto de 2022

UM POSTAL DE JORGE LUIS BORGES

 


DA SALVAÇÃO PELAS OBRAS

   Num Outono, num dos Outonos do tempo, as divindades do xinto congregaram-se, não pela primeira vez, em Izumo. Diz-se que eram oito milhões, mas sou um homem muito tímido e sentir-me-ia um pouco perdido entre tanta gente. Além disso, não me convém lidar com números inconcebíveis. Digamos que eram oito, já que oito é, nestas ilhas, de bom augúrio.
   Estavam tristes, mas não o mostravam, porque os rostos das divindades são kankis que não se deixam decifrar. No verde cume de uma colina sentaram-se formando uma roda. Do seu firmamento ou de uma pedra ou de um floco de neve tinham vigiado os homens. Uma das divindades disse:
   — Há muitos dias, ou muitos séculos, reunimo-nos aqui para criar o Japão e o mundo. As águas, os peixes, as sete cores do arco-íris, as gerações das plantas e dos animais, tudo nos correu bem. Para que tantas coisas não os sufocassem, demos aos homens a sucessão, o dia plural e a noite una. Outorgámos-lhes, além disso, o dom de experimentar algumas variações. A abelha continua a repetir colmeias; o homem imaginou instrumentos: o arado, a chave, o caleidoscópio. Também imaginou a espada e a arte da guerra. Acaba de imaginar uma arma invisível que pode ser o fim da história. Antes que aconteça esse facto insensato, apaguemos os homens.
   Ficaram a pensar. Outra divindade disse com calma:
   — É verdade. Imaginaram essa coisa atroz, mas também há esta, que cabe nos espaço abrangido pelas suas dezassete sílabas.
   Entoou-as. Estavam numa língua desconhecida e não pude compreendê-las.
   A divindade maior sentenciou:
   — Que os homens perdurem.
   Assim, por obra de um haiku, a espécie humana salvou-se.

Izumo, 27 de Abril de 1984.

Jorge Luis Borges, de Atlas (1984), trad. Fernando Pinto do Amaral, in Obras Completas, Vol. III, 1975-1985, Círculo de Leitores, Dezembro de 1998. p. 471.

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