sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

RETRATO DO ARTISTA

 


   Em Janeiro de 1904, James Joyce submeteu a W. K. Magee, editor da revista independente “Dana”, um ensaio intitulado “A Portrait of the Artist”, cuja publicação foi rejeitada com a justificação de que não era possível publicar algo ininteligível. “Não posso publicar o que não compreendo”, terá dito Magee. Com um temperamento que não era de se deixar abater, Joyce pegou no manuscrito e desenvolveu-o até chegar ao resultado que hoje conhecemos sob o título “Retrato do Artista quando Jovem” (Relógio D’Água, Janeiro de 2012). O livro só viria a ser publicado em 1916, 12 anos passados sobre o primeiro esboço e inúmeras recusas de editores. Estas recusas já nada terão tido que ver com a incompreensibilidade da prosa, mas sim com os conteúdos autobiográficos distribuídos por cinco capítulos em que ficamos a conhecer a juventude do autor até à decisão de abandonar o país natal. Tornou-se demasiadamente compreensível.
   A família, o problema irlandês, a educação religiosa, as crises de fé, a iniciação sexual com uma prostituta, a revolta contra a Igreja, tudo isso é descrito pelo autor de “Ulisses” com bastante clareza. Logo no primeiro capítulo, a noite de consoada em família transforma-se numa acesa discussão sobre a questão irlandesa e o modo como nela se misturam política e religião: «Somos uma raça desgraçada, escravizada pelos padres, sempre fomos e sempre havemos de ser, até ao fim dos tempos» (p. 44). O anticlericalismo joyceano, sobejamente discutido, começou a ganhar forma cedo. A revolta que nele se opera não é meramente espiritual, é política no seu sentido mais profundo.
   A Irlanda de que Joyce se exila impunha-lhe uma moral que ele não estava disposto a aceitar e à qual não queria curvar-se, a moral das palmatórias injustas no colégio de jesuítas, uma moral que trazia os crentes de joelhos atemorizando-os com conceptualizações do Inferno para onde seriam enviadas as almas dos danados. Ele lia Lorde Byron: «Todos os tempos livres que a vida escolar lhe deixava eram passados na companhia de escritores subversivos, cujos sarcasmos e excessos de linguagem lhe geravam um fermento no cérebro antes de ressumarem nos seus textos incipientes» (p. 82). Curiosamente, “Chamber Music” (1907), o primeiro livro publicado por James Joyce, precisamente um livro de poemas, parece escapar a esses excessos de linguagem adoptando um estilo intimista e até aparentemente conservador: «Quem a glória perdeu sem descobrir / Nem uma alma sequer afim da sua, / Em cólera e desdém, entre inimigos, / Cativo por vetusta fidalguia, / E quem sempre se esquiva, em altivez, / Só tem seu próprio amor por companhia» (“Música de Câmara”, trad. João Almeida Flor, Relógio D’Água, Fevereiro de 2012, p. 57).
   Regressando ao manuscrito de 1904, nele se diz: «Cepticamente, cinicamente, misticamente, ele havia buscado uma satisfação absoluta e agora, pouco a pouco, começava a ter consciência da beleza na condição dos mortais» (trad. minha). Julgo estar aqui o cerne da questão. Abandonar a Irlanda significou, antes de mais, abandonar um ambiente de castração forçado pela Igreja. “Música de Câmara” é uma declaração de amor à vida e ao que nela desponta de belo e instigador. Quando o livro foi publicado, Joyce já havia partido uma primeira vez. Regressara em 1903 para o funeral da mãe. No ano seguinte, conheceu Nora Barnacle e com ela se instalara em Pola. Tiveram o primeiro filho em 1905 e uma filha em 1907. O amor entre ambos está patente nas cartas que Joyce escreve a Nora: «Só na arte, querida Nora, é que nós os dois encontraremos consolo para o nosso amor. Gostava de te ver rodeada de tudo o que é belo, nobre e elegante em arte» (p. 57). Esta nobreza e elegância é a dos poemas em “Música de Câmara”, aos quais não faltou uma paixão que nas cartas se revela em termos despudoradamente pornográficos.
   O desejo que levava ao pecado foi superado pelo amor carnal, por uma energia de viver que nenhum pregador podia pôr em xeque com elucubrações apocalípticas. A opção do “jovem artista” foi, portanto, pela carne, pelo corpo, pela vida, pela «consciência da beleza na condição dos mortais». É uma opção contra o medo que mantém os fiéis cativos do pecado e da confissão, é uma opção pela liberdade.
   A trindade de Joyce é uma trindade negativa, ou seja, afirma-se pela oposição que o autor lhe faz. Nacionalidade, língua e religião serão os tópicos de toda a sua obra. Em todos os seus livros, de “Gente de Dublin” a “Ulisses”, passando pelo “Retrato”, encontraremos essa desconstrução da língua que o tornou famoso, um combate feroz à religião e uma recusa da Nacionalidade que não se confirma apenas na opção pelo exílio: «A Irlanda é a porca velha que devora os próprios leitões», diz Stephen Dedalus (nome que é todo um programa), no último capítulo do “Retrato”. Mais do que se revoltar contra a Irlanda, reconheçamos, Joyce revoltou-se contra quem nela detinha o poder, a Igreja. O seu exílio corresponde, desta forma, a um retiro espiritual, isto é, a uma expurgação da educação católica de que fora vítima na juventude. Cortou o cordão umbilical, cozinhou-o e depois serviu-o aos leitores sob a forma de livros.

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