quarta-feira, 5 de abril de 2023

MERRY CHRISTMAS MR. LAWRENCE (1996)

 


Demorei um minuto a escrever quarenta vezes “gosto” numa página em branco, precavendo-me assim contra desgostos que retumbem muito para lá destes lugares onde inventamos vidas. Por exemplo, gosto de passear a cadela pela manhã. É um ritual que me alevanta os dias. Perdi o hábito do café e do jornal, embora a espaços frequente certas mesas nas imediações para refrescar o cérebro com uma cerveja ou divertir-me a escutar tragédias alheias. Abro um caderno e escrevo repetidamente a palavra gosto, eventualmente uma frase respigada no alvéolo contíguo, cada vez mais raramente um verso. As ideias desabotoam a inteligência enquanto passeio a cadela, puxando-me ela a mim para o interior do seu bosque privado de aventuras, determinada como eu nunca soube ser em matéria alguma. Regressamos a casa aliviados, ela por ter feito o que era para fazer, eu por lhe ter dado essa possibilidade. É nisto de abrir possibilidades que encontro sentido, esse sentido que sempre escapa a quem o busca em teses e teoremas e doutrinas e ideais falíveis como fósforos. Há dias, a mais nova andava preocupada com o sentido da vida, matéria de discussão em aula de Filosofia, e falou-me no assunto. Dizer-lhe o quê senão que o sentido da vida está em abrir possibilidades, aos outros, a nós, ao mundo, possibilidades que tornem viável a existência de cada qual no seu singular modo de ser, sem atropelos nem condecorações. Apenas concretizações. Sento-me ao computador e teclo o meu piano ao som de Sakamoto & Morelenbaum: gosto, gosto, gosto, gosto, gosto, quarenta vezes gosto, escrevo-o até me convencer de que gosto realmente do sol que ora brilha e das rolas que cantam e dos pombos que cagam tudo e das gaivotas que atacam os pombos e das ervas que invadem os canteiros e das raízes que rompem o alcatrão e do gato esmagado na beira da estrada e do lixo espalhado por esses inúmeros perfis que tudo poluem e o mais que amanhã será esquecido porque amanhã será outro dia, claro, limpo, vazio, silencioso como as coisas belas, como uma possibilidade em potência, descerrada às mãos que concretizam.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Dizer-lhe o quê senão que o sentido da vida está em abrir possibilidades, aos outros, a nós, ao mundo, possibilidades que tornem viável a existência de cada qual no seu singular modo de ser, sem atropelos nem condecorações."

Esta frase contém toda a latência dos dias. Aponta-lhes o sentido. "Esse, que sempre escapa" Obrigada!