MULTIPLICAÇÃO DOS RATOS
Sabemos tão pouco (pensa ela)
quando deixamos de sentir o que guia
a nossa sede e o copo que a leva
à boca. Talvez deixemos de ter boca
nestes dias e as palavras sejam apenas excrementos
da mão. Atravesso a cidade
com a memória dos teus braços,
o autocarro alongando o rio e era eu
que via tudo isto da outra margem.
O fumo come as chaminés e os ratos
multiplicam-se nos esgotos debaixo das pedras
do museu que a história resgatou ao tempo.
Impávidas as estátuas gregas, e o escriba acocorado
tem o mesmo papiro nos joelhos desde há séculos.
Mas o rosto está mais vivo do que o dos turistas que o olham,
e esse olhar cinde-me em noite e eu.
Por isso estou à margem, desço pelas trevas da cidade
onde a vida pulula nos dentes ávidos. Sem fome, é certo,
falo a linguagem dos ratos e tenho a penugem quente.
Não cedas à tentação do amor. Desde o início da literatura
as folhas do outono são feitas em fábricas de celulose.
O amor está gasto de não ser e eu estou ainda
nos primeiros mitos. Hei-de nascer de um touro
e uma mulher, adivinhar nas tuas vísceras só que quiser.
Espalhar as cinzas da vida na tua cabeça
para que acordes sem palavras no rosto de um escriba
anónimo e mortal e sejas apenas tu e por isso eu.
Mas não me cabe fazê-lo. No fim do poema deixarei
tudo como antes. E quando subir entre os escombros
olharei para trás? (pergunta ela) sabendo que não há resposta.
E leva o gosto amargo à boca sem copo que a salve.
Rosa Alice Branco, in O Mundo Não Acaba No Frio Dos Teus Ossos (pensa ela), Quasi Edições, Maio de 2009, pp. 36-37.
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