quinta-feira, 17 de agosto de 2023

THE EPIC (2015)

 


Eduarda Neves fala de ouroboros e de labirintos e de artistas menores, contra a domesticação do desejo, por vontade e risco de se perder, por oposição à institucionalização do gesto esplêndido e desejante que está na génese da arte. O ouroboro é a imagem do tempo devorando-se a si mesmo, por antítese ao tempo que flui atraindo no leito, sem percalços, criadores encantados pela melodia do sucesso, pela admiração e pelo lucro. Há um direito ao silêncio que a lei não consagra, pois é preciso promover o ruído que sujeita impedindo de pensar. O poder é o encantador de serpentes. «Pouco a pouco, vai-se instalando uma arte débil, a dos artistas esgotados, dissipados, para falar como Deleuze.» Programa: «Aprender a esquecer, estar contra o tempo.» E nós? Estar contra não nos agrada particularmente, nem estar a favor, preferimos não estar, esse estar consigo mesmo em alternativa ao estar em função do outro, preferimos estar com o outro, por mútuo acordo, ambos perdidos, claro, no labirinto das cabeças individuais, as cabeças que, como nos ouroboros, devoram as caudas. O princípio que devora o fim ou por ele é devorado, o sem princípio nem fim ou ainda o fim assimilado pelo princípio. A imagem dispõe-se a múltiplas significações. Penso na música de Kamasi Washington, artista enorme de corpo físico e imaterial, autor do triplo “The Epic”. No épico de Washington cabe uma infinidade de tons menores, os do país cujo apelido do saxofonista é a capital, cabem as vozes dos escravos e dos explorados e o sopro derradeiro dos negros ainda hoje humilhados pela segregação e pela desigualdade. Eis a voz que se escuta naquela música sem princípio nem fim. Um triplo, uma trindade, o plano, a história gloriosa, a repetição da história. Assim mesmo foram arrumados os 17 temas. O eterno retorno é este tempo em continuada reconstrução sublinhado pela música que faz ecoar não o que se aprendeu a esquecer, mas o que se desaprendeu de manter vivo. A morte é ainda o problema central, a perspectiva do fim que tudo relativiza ou tudo organiza em princípios religiosos, científicos. Quem é o artista menor? O que escapa ao tempo? O que não foi capturado pelas teias do poder? Porque quis? Porque não podia ser de outra maneira? Ou simplesmente aquele que se opõe ao poder tudo fazendo para lhe rasgar a teia? É o artista livre. Quem é o artista livre?

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