sábado, 28 de outubro de 2023

ALBERTINE

 


“The Albertine Woorkout” foi publicado em 2014. Num périplo por Sevilha, adquiri recentemente a versão espanhola (Vaso Roto Ediciones, 2015), bilingue. Em Carson, já se sabe, os géneros literários não têm lugar, tudo se mistura. Este livro é um caderno de apontamentos de uma leitora de Proust, interessada, sobretudo, na personagem Albertine: «O nome de Albertine aparece 2363 vezes no romance de Proust, mais do que o de qualquer outra personagem.» À hermenêutica contabilística, Carson adiciona a teoria da transposição, não sem denunciar as limitações de ambas na análise de uma obra. São apontamentos curtos, brevíssimos, numerados de 1 a 58 e seguidos de vários apêndices. São notas de uma leitora atenta e informada, imersa no campo em que a personagem desabrocha. Gosto da comparação que faz entre Albertine e Ofélia: «Albertine, tal como Ofélia, personifica para o seu amante a juventude em flor, mas também a castração, a perda, a ameaça e o puro obstáculo. Albertine, tal como Ofélia, está condenada por um voraz apetite sexual cuja expressão lhe é negada. Ofélia leva o seu apetite sexual ao rio e afoga-o entre plantas aquáticas. Albertine distorce o seu na falsa consciência de uma planta de sonho. Em ambos os cenários, o homem parece controlar o guião, mas ele mesmo se emaranha nas artimanhas da mulher. Por outro lado, fica difícil dizer quem engana quem.» Neste processo de leitura imiscuem-se várias referências, surgem naturalmente, de um modo associativo espontâneo. Beckett, sempre presente, mas também Roland Barthes, por exemplo, a quem Carson chama pré-socrático tardio. Zenão de Eleia, outra referência curiosa, acompanhada de uma confissão: «Causa-me uma certa dor de cabeça pensar durante muito tempo nas aporias de Zenão, ainda que desfrute do rigor do seu discurso.» A relação entre substantivos, verbos e adjectivos, é outro tópico constante, assim como a noção de bluff. Fico com a sensação de que Carson se coloca diante do texto como quem joga uma partida de poker. Entre o autor e o leitor as cartas jogadas resultam sempre de uma espécie de logro. Será a interpretação um logro? Ou a própria literatura? A tradução é um logro? Depois, surgem associações inesperadas. Como esta, deliciosa, que não resisto a partilhar:

 

O importante biscoito chamado madalena foi inventado por um rei deposto da Polónia que tinha como chefe de pastelaria alguém que se chamava Madalena. Mais tarde, uma ordem de freiras preparava as madalenas de acordo com a receita original, até que a Revolução francesa aboliu os conventos. Hoje conseguimos a receita com Julia Child ou na rede. É estranho e provavelmente um acaso que outra famosa Madalena da nossa herança cultural, a heroína do filme “Vertigo” de Hitchcock, se entregue à morte atirando-se da torre de uma igreja no fim do filme depois de ser surpreendida por uma freira. Podemos, em geral, questionar-nos sobre quão familiarizado estaria Hitchcock com o romance de Proust; por certo o filme faz-nos mergulhar nos problemas do tempo e da memória, já que a heroína morre duas vezes e o seu interesse está resguardado por mentiras constantes ou, podia dizer-se, por um gigantesco bluff. Ao mesmo tempo seria curioso pensar que Proust de alguma maneira viu “Vertigo”, já que os momentos finais do seu romance estão fortemente capturados por esta sensação. Na última página, Marcel contempla o ofício de escrita que tem pela frente e confessa: «Causava-me vertigens ver tantos anos sob mim, ainda que dentro de mim, como se tantos anos de tempo me colocassem a quilómetros de altura».

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