Uma missiva dirigida a Sua Excelência
o Meritíssimo Poeta José Luiz Tavares
Não tentarei decifrar o teu livro, labirinto em que nos perdemos assim que nele entramos, fogo que se combate com fogo, serpente que morde a cauda, como o uroboro, alimentando-se do próprio veneno, livro «engendrado a sangue», como dizes, num período por ti assinalado, o do primeiro confinamento, retomado quando, já em Fevereiro de 2021, combatias o vírus que te atacou.
Subitamente atacado de sorrisos escarninhos, íntimos e nada escandalosos, chego a ter pena do vírus, ele sim desavisado por se ter metido com quem não devia. Levou nas trombas, afastou-se a ganir como cão doméstico, rabo entre as pernas e dentes arreganhados a resmungar teimosamente. Topo-lhe os olhinhos encolhidos, metidos para dentro de vergonha. Vacinado estavas tu com dose tripla de anticorpos que há muito encontraram morada no teu corpo: a poesia. Deste-lhe com o tijolo na tola, «Como Um Segredo na Boca do Universo», essa obra completamente inacabada, 1400 páginas a fazerem prova do que em ti respira, uma língua rigorosamente cerzida, dominada sem deslumbramentos, maleável como o barro de que dizem termos sido feitos por um Deus que logo se arrependeu de nos fazer. Contigo, quem perde o pio é a morte. E Deus que se amanhe.
Tenho andado com o teu livro às costas, como disse, o teu evangelho de espada em riste contra a hipocrisia dominante. Penso no pormenor do Caravaggio que reluz na capa, a vanitas que nos desperta para o destino. Recentemente, encontrei à entrada do oratório de Santa Maria Della Scala, um antigo hospital de Siena transformado em museu, uma dessas caveiras elucidativas com a seguinte inscrição: «como tu sei fui ancor io: com’io sono sarai ancor tu» (eu também fui como tu és: tu também serás como eu sou). Sou sensível à precariedade da existência, à efemeridade de uma vida, e creio que a vacuidade denunciada nesses crânios despidos de carne que Damien Hirst cobriu com diamantes de sangue, creio que essa vacuidade apela mais a um concreto sentido trágico da existência do que à submissão a uma ideia abstracta de vida eterna. A que os mártires anseiam cometendo os crimes mais hediondos.
Estou insuportavelmente farto de filhos da puta que pretendem impor os seus absolutos, que matam, chacinam, estropiam, degolam, destroem, queimam, arruínam, devastam, em nome de paraísos fiscais para almas obedientes. «Agora / estamos vivos», declaras tu num dos teus poemas, e isso toca-me tanto quanto a perspectiva de um dia deixarmos de estar, pelo que preferível será fazer como aconselhava Horácio: carpe diem. Aproveita o dia e desconfia do amanhã. Ou, para ir à fundação dos tempos, berrar bem alto como Eurípedes: «Olhai o que acontece, e dai a quanto digo / A fé que isto merece: eu afirmo que os reis / Matam, roubam, saqueiam à traição cidades, / E assim fazendo, vivem mais felizes / Que quantos dia a dia pios são e justos. / Quantas nações pequenas, bem fiéis aos deuses, / Sujeitas são dos ímpios com poder e força, / Vencidas dos exércitos que as escravizam. / E vós, se em vez de trabalhar rezais aos deuses, / E deixais de lutar para ganhar a vida, / Aprendereis que os deuses não existem. / Que todas as divindades significam só / A sorte, boa ou má, que temos neste mundo.» Vai ficar tudo bem.
Talvez alguém lendo este teu livro, «Perder o pio a emendar a morte», título que não posso senão considerar irónico, por me parecer mais exacto teres tu tirado o pio à morte enquanto te emendavas, talvez alguém lendo este teu livro, dizia eu, venha a falar de uma poesia zangada. Razões encontrará em versos que o não desmentem. Estás zangado José Luiz? Estavas e já não estás? Sempre estiveste? De que cratera foi expelida esta lava que tudo arrasta à passagem? Deixa-me arriscar. Esta lava escorre às gargalhadas, foi germinada na cratera do riso, esse vulcão essencialmente satânico, como pretendia Baudelaire, em que mergulhamos por desespero ou por vingança. Quiçá desesperança. Os teus poemas são gargalhadas cuspidas na cara dos hipócritas, esses sim, inimigos, donos de um mundo completamente do avesso, maquinistas de uma engrenagem que mete miseráveis contra indigentes para que nada falte nos banquetes da obesidade e da opulência e da ostentação. Da tua gargalhada antilírica colho estas flores do mal que me apetece plantar no milionário altar-palco entretanto arrumado numa qualquer arrecadação do Estado a que isto chegou: «Não se queixam os meninos / da minha rua (lá na ilha) / que têm pão uma vez ao dia, / que descem as íngremes ladeiras / agarrados aos rabos dos jumentos / para acartar uma pouca de água / dos poços enlameados ou quase secos» (p. 69).
Talvez alguém lendo algum dos poemas deste teu livro venha a falar de um libelo contra a hipocrisia, versos danados de verrina sem lugar para o sentimentalismo e com a «plumagem pretensiosa da poesia» barrada logo à entrada da fundação casa museu. As tuas leituras são as minhas leituras, sobretudo esse Nicanor Parra em epígrafe por ti louvado no poema décimo dos sessenta que compõem o núcleo central. Parra, o mestre da antipoesia, ensinou-nos a encobrir as emoções com sujeitos poéticos agressivos. Agradecido. Nele, como neste teu livro, o sarcasmo e a ironia surgem contaminados pela actualidade, mas encaram o real como algo monstruoso, impelindo o poeta para um lugar de permanente conflito com as instituições. O seu Cristo é o de Elqui, que tu mencionas, um louco inocente e extravagante que carnavaliza a palavra sagrada. O teu Cristo, creio, sobrevive em cada um de nós com a sua própria cruz, mais pesada nuns do que noutros. Será?
Parra denunciou no seu tempo a burocracia da morte, tu denuncias no teu «a funda praga de ser-se homem» (p. 88). O tempo da peste que te ofereceu cenário e ambiente, os dias de convalescença, não foram suplantados com o levantamento das restrições. Se já não estamos em estado de emergência, se com o passar do estado de calamidade iniciámos o desconfinamento, é só porque a realidade pede disfarces, e tanto Bucha como Gaza não entram nas cores do arco-íris com que enfeitamos as janelas onde espreitávamos vizinhos e batíamos palmas aos heróis de bata branca. «Para acabar de vez com a inocência leitora», sugiro, contigo, que nos instalemos no labirinto e peguemos o Minotauro pelos cornos contra as asas de cera que nos levarão à queda. Façamos passeios higiénicos com os deuses pela trela, dêmos graças ao diabo por respirarmos ainda, desenhemos os contornos do nosso rosto no bafo colado ao espelho e divirtamo-nos com as formas desfazendo-se em vapor. Que se fodam os absolutos mais os seus zeladores.
«Com a faca de cortar bifes / na canhota mão / avanço para a autópsia do poema, / pois tantos se perguntam / como ele é produzido: // julgo que as mágoas azuladas / moram na cavidade direita da cabeça, / onde deveria estar a chave do euromilhões; // aqui onde devia ser poiso da razão / parece uma cave abandonada / onde o malfeitor ganha coragem / para o próximo cometimento / (rezando a uma doce madonna / por todos e cada um de vós, / antes de vos abater com o cutelo)» (p. 130). Leio-te e lembro-me das palavras de Joaquim Manuel Magalhães dedicadas à poesia de Fernando Assis Pacheco, quando ele fala de como os detalhes pessoais se movem ironicamente para uma análise do mundo ou refere o modo como a auto-ironia releva a humanidade de que somos feitos. Diz ele que nessa poesia «não há filosóficas mortes do homem, nem contorções que só os deslavados apreciam, nem rarefacções que são o refúgio dos estúpidos». Estamos encalhados na vida até deixarmos de estar. O que possamos dizer sobre isto não escapará à feição de uma banalidade, mas é no tempo de estarmos que algumas coisas podemos fazer por nós e pelos outros, não digo os inacessíveis, digo aqueles a que chegamos e em quem as nossas palavras quase tocam como o dedo indicador de Adão quase toca o de Deus que se vê no tecto da Capela Sistina.
Tenho pensado, amigo poeta, na melhor maneira de terminar esta missiva. Não a encontro. Os teus poemas, os teus crimes, continuam a afectar-me, leio-te com a vida toda na garganta e não é um animal de pranto o que vislumbro. Desculpa-me se te falho, o que não terá gravidade alguma depois de me teres mandado à merda. Vou com gosto, como dizia o outro, na certeza de que encontrarei por lá uma multidão para me receber. A Academia que se encarregue de fazer de ti um poeta canónico, comigo não contarão para a construção de mais mausoléus. Estás um pouco acima desses mármores, não permitas que te enterrem ou te emparedem numa câmara como fizeram a Antígona, a que desobedeceu na vida e na morte.
Que animal é, então, aquele com que me deparo ao instalar-me no teu labirinto? Uma estranha criatura, por certo, híbrida como o Minotauro, anfíbia como a Heket dos egípcios, parte-homem, parte-animal, uma dessas criaturas soltadas nas cidades invisíveis de Italo Calvino, uma criatura humana, como qualquer um de nós, capaz tanto das mais engenhosas e belas criações como da mais ignominiosa ruína. Apesar de tudo, escrever poemas é crime de poucas vítimas. Poucos serão aqueles que atingiremos com as nossas balas, menos ainda os que ficarão feridos de espanto. Melhor assim do que andar perdido numa floresta de enganos à espera de ser guiado pelo canto dos passarinhos ou devorado pelo lobo mau da consciência. Está na hora de perder o pio, não sei se disse tudo o que queria dizer ou parte ou nada. O que for será. Vivos ou mortos, não teremos emenda.
Caldas da Rainha, 14 de Outubro de 2023
1 comentário:
Um texto que arde pela qualidade e excelência
Ml
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