Publicado em Janeiro deste ano pela não (edições), “A Barriga no Ar”
introduz-nos na poesia de Gertrude Stein (1874-1946), figura central das vanguardas
que agitaram águas nas primeiras décadas do século XX. Nascida nos Estados
Unidos da América, a Autora mudou-se para França em 1903 e por aí se fixou. Está
sepultada no Père Lachaise, entre meio mundo com quem conviveu em vida. Foi
estudante no Johns Hopkins School of Medicine antes de haver desistido do curso
para se tornar coleccionista de arte, travando assim conhecimento com Picasso,
Ezra Pound, James Joyce, Matisse, F. Scott Fitzgerald, Sherwood Anderson,
Picabia, Apollinaire, entre tantas outras figuras de proa numa sociedade dominada por
homens que então olhavam com espanto e repúdio a reivindicação de direito ao
voto pelas sufragistas.
Stein começou a publicar em 1909, com uma colecção de três histórias intitulada
“Three Lives”. Por vezes considerada hermética, conseguiu alguma popularidade
com obras de carácter mais autobiográfico. Escreveu romances, peças de teatro,
contos e poesia, poemas geralmente longos num estilo repetitivo, mais ou menos
obscuro, mas assaz irónico. “Lifting Belly”, que na tradução de Patrícia Lino
ficou “A Barriga no Ar”, não é excepção. Escrito entre 1915 e 1917, num período
de profundas transformações pessoais e em plena Primeira Guerra Mundial —
«Podes dizer Francis Ferdinand foi para Oeste.» (p. 46) —, este poema a que chamaremos
dramático, quer pela sua estrutura dialógica, quer pela encenação de uma
sexualidade socialmente reprimida, é geralmente lido à luz da relação amorosa
da Autora com Alice B. Toklas (1877-1967). «Com Alice, para Alice, para Alice
com Gertrude, de Alice para Gertrude, para Alice, Gertrude escreveu “Lifting
Belly”. É a história de uma relação, não uma voz, mas vozes – colaboração —,
diálogo, resposta, amor», escreve Rebecca Mark na introdução ao poema publicado
pela The Naiad Press, Inc (1995).
Inédito até 1953, “Lifting Belly” apareceu finalmente no volume “Bee Time Vine and Other Pieces (1913 to 1927)”, reunião de composições primitivas que revelam já uma Autora no pleno domínio de estratégias com o propósito de minar as convenções da poesia lírica celebrando a liberdade de um erotismo cantado nas suas múltiplas possibilidades: «A barriga no ar é uma carícia permanente. / A barriga no ar está aborrecida. / Não me digas. / Barriga no ar agora. / Vaca. / A barriga no ar é exata. / Vim-me muitas vezes com esta coisa. / A barriga no ar é necessariamente aventureira» (p. 54). Dividido em três partes, o poema apresenta um léxico bastante acessível, apesar do discurso tender para uma confusão de sentidos que coloca as interlocutoras do poema num plano intimista, aparentemente doméstico, falando a esmo sobre as suas vidas e o mundo. «“Lifting Belly” é o casal, mas também a linguagem e o acto de compor o texto que virá a definir o casal», argumenta a poeta Christine Scanlon no ensaio “Lifting Belly: The Language of (In)Visibility” (2013).
Quem conheça minimamente a biografia do casal Stein-Toklas facilmente identificará algumas evocações, os lugares mencionados, podendo assim descodificar um pouco do que se apresenta como peças dispersas de um puzzle. O diálogo mantido ao longo do poema oferece dados com os quais o leitor é chamado a jogar um jogo que é também o da tentativa de compressão dessa estranheza que repousa sobre o próprio título da composição. Quem fala quando fala? «Diz-me como a fodes. A quem. A mulher judia. Como a fodes. Ela é minha esposa» (p. 56). As alterações constantes de sujeito podem dificultar a vida a quem esteja mais preocupado com decifrações do que com o gozo de um texto que, ao desviar-se da norma, fala-nos igualmente na sua forma de um desejo à época considerado desviante. No fundo, talvez tudo seja mais simples do que aparenta. Afinal, «Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa» (p. 50). E “A Barriga no Ar”, nas suas variadas e diversas acepções, jamais deixará de ser aquilo que é plenamente sob o manto da linguagem: “Lifting Belly”.
Inédito até 1953, “Lifting Belly” apareceu finalmente no volume “Bee Time Vine and Other Pieces (1913 to 1927)”, reunião de composições primitivas que revelam já uma Autora no pleno domínio de estratégias com o propósito de minar as convenções da poesia lírica celebrando a liberdade de um erotismo cantado nas suas múltiplas possibilidades: «A barriga no ar é uma carícia permanente. / A barriga no ar está aborrecida. / Não me digas. / Barriga no ar agora. / Vaca. / A barriga no ar é exata. / Vim-me muitas vezes com esta coisa. / A barriga no ar é necessariamente aventureira» (p. 54). Dividido em três partes, o poema apresenta um léxico bastante acessível, apesar do discurso tender para uma confusão de sentidos que coloca as interlocutoras do poema num plano intimista, aparentemente doméstico, falando a esmo sobre as suas vidas e o mundo. «“Lifting Belly” é o casal, mas também a linguagem e o acto de compor o texto que virá a definir o casal», argumenta a poeta Christine Scanlon no ensaio “Lifting Belly: The Language of (In)Visibility” (2013).
Quem conheça minimamente a biografia do casal Stein-Toklas facilmente identificará algumas evocações, os lugares mencionados, podendo assim descodificar um pouco do que se apresenta como peças dispersas de um puzzle. O diálogo mantido ao longo do poema oferece dados com os quais o leitor é chamado a jogar um jogo que é também o da tentativa de compressão dessa estranheza que repousa sobre o próprio título da composição. Quem fala quando fala? «Diz-me como a fodes. A quem. A mulher judia. Como a fodes. Ela é minha esposa» (p. 56). As alterações constantes de sujeito podem dificultar a vida a quem esteja mais preocupado com decifrações do que com o gozo de um texto que, ao desviar-se da norma, fala-nos igualmente na sua forma de um desejo à época considerado desviante. No fundo, talvez tudo seja mais simples do que aparenta. Afinal, «Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa» (p. 50). E “A Barriga no Ar”, nas suas variadas e diversas acepções, jamais deixará de ser aquilo que é plenamente sob o manto da linguagem: “Lifting Belly”.
Sem comentários:
Enviar um comentário