Disse Octavio Paz que «o haiku é uma cápsula
cheia de poesia capaz de fazer explodir a realidade aparente». Por parecer
fácil, a forma foi adoptada pelo Ocidente sem grande respeito pela tradição: três versos que deixem subentendida a estação do ano em que foram
produzidos com o objectivo de expressar sentimentos belos, elevados, profundos,
explica Joaquim M. Palma nas notas à obra completa de Bashô. As excepções, como
é óbvio, encontram-se logo nesses tempos primitivos em que a elaboração de poemas
era um acto de confraternização. Estamos muito distantes disso tudo, a explosão
da realidade aparente fracassou diante da vontade de impressionar e a beleza
deu lugar ao cómico, a elevação ao risível, a profundidade à superfície do riso.
Não há mal nisso, é até bastante agradável ver por aí tanta auréola espalhada
pela lama. Mas de quando em vez sabe bem regressar aos ares puros de antanho,
até para sermos surpreendidos por desvios inesperados:
43
Uma última bufa:
serão folhas sonhadas
caindo em vão?
Kyo’on
A fonte é “Japanese Death Poems – Written by
Zen Monks and Haiku Poets on the Verge of Death”, compilação de 312 páginas
profusamente anotada por Yoel Hoffmann (1937 - 25 de Agosto de 2023) e publicada pela Tuttle em 1986. Ricardo
Marques, responsável por esta edição portuguesa, reduziu a coisa ao essencial,
optando por “91 haikus finais” ilustrados por Rui Zink. Desapareceu a divisão
em três partes, onde se explorava a tradição de escrever poemas sob ameaça da
morte, os poemas da morte por monges budistas zen e, finalmente, mais de 300 poemas
escritos por poetas japoneses à beira da morte. O que nos chega é, pois, uma
pequena amostra, esvaziada de contextualização teórica sobre esta relação com a
morte ou quaisquer outros dados acerca da proveniência dos textos. Um mimo, portanto,
a pedir desenvolvimentos:
39
E se eu realmente
me tornar num espírito —
A festa acabou.
Koju
Não resisto, porém, em recorrer à introdução
de Hoffmann para respigar este dado: «Na língua japonesa, é raro o uso do termo
“morte” (shi) referindo-se a indivíduos. Os japoneses referem-se antes a tipos
particulares de morte: shinju, suicídio do amante; junshi, martírio de um
guerreiro pelo seu senhor; senshi, morte na guerra; roshi, morte de velhice;
etc. Estas expressões ligam a morte ao tipo de vida que a pessoa levou e às
circunstâncias em que morreu. É comum referirem-se a um morto como Buddha
(hotoke), lembrando a crença de que a morte purifica uma pessoa libertando-a da
ignorância e do desejo que conspurcam a espécie humana». Podemos, por isso, olhar para
estes poemas como uma compilação de epitáfios que, ao contrário da tradição
grego-romana, escapam ao mero elogio fúnebre ou ao resumo de uma vida concentrando-se
nos fenómenos que, no mundo natural, denunciam a transitoriedade da existência,
como as nuvens passageiras ou a mudança das estações e a sua implicação no aspecto
da paisagem, nomeadamente nas plantas, e na beleza do que inspira uma sensação
de constância e perfeição:
66
Nuvens de chuva dissipam-se:
por cima do lótus brilha
a lua perfeita.
Seishu
Profusas referências à lua, à água sob várias
formas (rápidos, neve, riacho, gelo, orvalho, ondas, oceano), a uma flora
composta por salgueiros e cerejeiras e pinheiros, aos arrozais, a frutos como o dióspiro e
a ameixa, a uma fauna onde encontramos pirilampos, traças, borboletas, o
rouxinol, a gaivota, etc, etc, etc, fazem destes poemas cara a cara com a morte
um elogio não daquele que perece mas daquilo que fica a partir do olhar desse
que perece. Vislumbrar beleza nesse instante derradeiro, eis a lição destes extraordinários
haikus sem ponta de lamento. São poemas da morte, sim, mas para elogiar a vida. Inspiram paz e sossego, serenidade:
35
Voltando a casa sob
um céu claro de verão:
penas de pássaros, flores.
Keido
In “A festa acabou – 91 haikus
finais”, seleccionados e traduzidos por Ricardo Marques, ilustração de Rui
Zink, Novembro de 2023.
serão folhas sonhadas
caindo em vão?
me tornar num espírito —
A festa acabou.
por cima do lótus brilha
a lua perfeita.
um céu claro de verão:
penas de pássaros, flores.
1 comentário:
“…fazem destes poemas cara a cara com a morte um elogio não daquele que perece mas daquilo que fica a partir do olhar desse que perece. Vislumbrar beleza nesse instante derradeiro, eis a lição destes extraordinários haikus sem ponta de lamento. São poemas da morte, sim, mas para elogiar a vida.” Eis a sabedoria.
Enviar um comentário