sábado, 30 de dezembro de 2023

A FESTA ACABOU

 


   Disse Octavio Paz que «o haiku é uma cápsula cheia de poesia capaz de fazer explodir a realidade aparente». Por parecer fácil, a forma foi adoptada pelo Ocidente sem grande respeito pela tradição: três versos que deixem subentendida a estação do ano em que foram produzidos com o objectivo de expressar sentimentos belos, elevados, profundos, explica Joaquim M. Palma nas notas à obra completa de Bashô. As excepções, como é óbvio, encontram-se logo nesses tempos primitivos em que a elaboração de poemas era um acto de confraternização. Estamos muito distantes disso tudo, a explosão da realidade aparente fracassou diante da vontade de impressionar e a beleza deu lugar ao cómico, a elevação ao risível, a profundidade à superfície do riso. Não há mal nisso, é até bastante agradável ver por aí tanta auréola espalhada pela lama. Mas de quando em vez sabe bem regressar aos ares puros de antanho, até para sermos surpreendidos por desvios inesperados:
 
 43
 
Uma última bufa:
serão folhas sonhadas
caindo em vão?

 
Kyo’on
 
   A fonte é “Japanese Death Poems – Written by Zen Monks and Haiku Poets on the Verge of Death”, compilação de 312 páginas profusamente anotada por Yoel Hoffmann (1937 - 25 de Agosto de 2023) e publicada pela Tuttle em 1986. Ricardo Marques, responsável por esta edição portuguesa, reduziu a coisa ao essencial, optando por “91 haikus finais” ilustrados por Rui Zink. Desapareceu a divisão em três partes, onde se explorava a tradição de escrever poemas sob ameaça da morte, os poemas da morte por monges budistas zen e, finalmente, mais de 300 poemas escritos por poetas japoneses à beira da morte. O que nos chega é, pois, uma pequena amostra, esvaziada de contextualização teórica sobre esta relação com a morte ou quaisquer outros dados acerca da proveniência dos textos. Um mimo, portanto, a pedir desenvolvimentos:
 
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E se eu realmente
me tornar num espírito
A festa acabou.

 
Koju
 
   Não resisto, porém, em recorrer à introdução de Hoffmann para respigar este dado: «Na língua japonesa, é raro o uso do termo “morte” (shi) referindo-se a indivíduos. Os japoneses referem-se antes a tipos particulares de morte: shinju, suicídio do amante; junshi, martírio de um guerreiro pelo seu senhor; senshi, morte na guerra; roshi, morte de velhice; etc. Estas expressões ligam a morte ao tipo de vida que a pessoa levou e às circunstâncias em que morreu. É comum referirem-se a um morto como Buddha (hotoke), lembrando a crença de que a morte purifica uma pessoa libertando-a da ignorância e do desejo que conspurcam a espécie humana». Podemos, por isso, olhar para estes poemas como uma compilação de epitáfios que, ao contrário da tradição grego-romana, escapam ao mero elogio fúnebre ou ao resumo de uma vida concentrando-se nos fenómenos que, no mundo natural, denunciam a transitoriedade da existência, como as nuvens passageiras ou a mudança das estações e a sua implicação no aspecto da paisagem, nomeadamente nas plantas, e na beleza do que inspira uma sensação de constância e perfeição:
 
66
 
Nuvens de chuva dissipam-se:
por cima do lótus brilha
a lua perfeita.

 
Seishu

 
   Profusas referências à lua, à água sob várias formas (rápidos, neve, riacho, gelo, orvalho, ondas, oceano), a uma flora composta por salgueiros e cerejeiras e pinheiros, aos arrozais, a frutos como o dióspiro e a ameixa, a uma fauna onde encontramos pirilampos, traças, borboletas, o rouxinol, a gaivota, etc, etc, etc, fazem destes poemas cara a cara com a morte um elogio não daquele que perece mas daquilo que fica a partir do olhar desse que perece. Vislumbrar beleza nesse instante derradeiro, eis a lição destes extraordinários haikus sem ponta de lamento. São poemas da morte, sim, mas para elogiar a vida. Inspiram paz e sossego, serenidade:
 
35
 
Voltando a casa sob
um céu claro de verão:
penas de pássaros, flores.

 
Keido
 
In “A festa acabou – 91 haikus finais”, seleccionados e traduzidos por Ricardo Marques, ilustração de Rui Zink, Novembro de 2023.

1 comentário:

Anónimo disse...

“…fazem destes poemas cara a cara com a morte um elogio não daquele que perece mas daquilo que fica a partir do olhar desse que perece. Vislumbrar beleza nesse instante derradeiro, eis a lição destes extraordinários haikus sem ponta de lamento. São poemas da morte, sim, mas para elogiar a vida.” Eis a sabedoria.