segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

DOIS POETAS ESPANHÓIS

 


   São certamente dois dos melhores livros de poesia que li este ano, ambos de autores espanhóis ainda vivos que, com as devidas distâncias, se ligam pelo diálogo constante com outras artes, a música no caso de Francisco Javier Irazoki (Navarra, 1954), a pintura, principalmente mas não só, no caso de Antonio Gamoneda (Oviedo, 1931). Comecemos pelo segundo, porventura mais familiar aos leitores de poesia portugueses. Em 1999, a Assírio & Alvim publicou, com tradução de José Bento, “Livro do Frio” (1992). Chega-nos agora este “Canção Errónea” (Flâneur, Abril de 2023), originalmente editado em 2012, com tradução do poeta João Moita, que, no posfácio, afirma «que, para Antonio Gamoneda, a função da poesia consiste no condão de transmurar o medo (da morte) em prazer.»
   Ao longo de 150 páginas (edição bilingue), Gamoneda dialoga com vários pintores, escritores, escultores, cineastas, esculpindo uma poesia muito menos ecfrástica do que intimista, no sentido de uma reflexão íntima acerca do sentimento de efemeridade que nos torna conscientes da precariedade da vida. Os autores convocados são uma espécie de interlocutores com quem Gamoneda estabelece uma relação desinteressada nos labirintos do pensamento, dramática faculdade que impele o poeta para a armadilha da contradição. O paradoxo está na busca incessante dessa luz do relâmpago que sempre escapa a quem pretenda fixá-la. Sabemos que assim é. E, no entanto, não desistimos. Insistimos no impossível.
   Memória e esquecimento debatem-se na poesia do Prémio Cervantes 2006 enquanto forças oponentes no campo de batalha da meditação, batalha íntima pela conquista de uma putativa verdade derradeira, aquela certeza que não podemos sequer saber se existe, absoluto cuja constância nos libertaria do medo da morte anunciada pela efemeridade de tudo quanto medra. Do combate parece antes resultar a noção de uma impossibilidade do conhecimento, a vida como acidente indefinível, frustração instauradora de um cansaço desenhado em pequenos poemas desarmantes: «Luz. / Há-de ser / a última luz. / Estou / muito cansado. / Não / recordo os meus passos. / Já / cheguei. / Não sei / aonde. / Estou / muito cansado» (p. 35).
   Se a morte é tema central na poesia de Gamoneda, o mesmo não se aplica a “Animal Aberto” (Medula, Abril de 2023), antologia seleccionada pelo autor e traduzida por Ana Catarina M. Martins. Aqui se reúnem poemas escritos entre 1977 e 2021, sendo que o poeta se estreou em 1980 com a colectânea intitulada “Árgoma” (1980). Irazoki integrou um grupo de escritores surrealistas, influência detectável, sobretudo, nos seus poemas iniciais, concebidos em versos povoados por imagens alucinadas de proveniência onírica: «Passam dois homens numa bicicleta apodrecida / quando o ar, esse adeus que se respira, / enrola a sua seda no chão» (p. 24). Crítico de música, desloca para o interior dos poemas esse labor com múltiplas referências. Logo no poema inicial “A Música”, deparamos com Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jack Kerouac, o flower power e o Maio de 68.  
    Podemos dizer que a partir da publicação do livro “Os Homens Intermitentes” (2006), com poemas escritores entre 1999 e 2003, operou-se uma inflexão nesta poesia. O verso deu lugar à prosa, em poemas que se aproximam do relato com memórias da infância, evocações familiares, num tom intimista, por vezes prosaico, noutras ocasiões erótico, mas quase sempre com uma vocação narrativa deveras sedutora. É disso exemplo este brevíssimo “Morte Transitável”: «Todas as manhãs, antes de começar as tarefas do dia, observo durante alguns minutos as flores plantadas à frente da minha porta. Aos pés das dálias, formigas vasculham o tapete de pétalas caídas. Com as derrotas que o tempo impõe, construíram o seu caminho» (p. 46). A componente contemplativa, acompanhada de traços autobiográficos, é porventura a face mais atraente de um poeta que me era inteiramente desconhecido e cuja descoberta levará, por certo, a um aprofundamento que esta inesperada antologia vem estimular.

1 comentário:

APS disse...

Gamoneda, um dos maiores poetas castelhanos, para mim. A que juntaria mais 4 grandes espanhóis: Aldana, Quevedo, Machado e Jiménez.
Bom Ano de 2024!