domingo, 24 de dezembro de 2023

DEUS DE REVÓLVER

 


   O Natal pode ser um poema perdido numa página em branco ou as memórias de um pai colérico a atirar porta fora a árvore enfeitada pela mãe, depois de sacar as poupanças aos filhos para ir às apostas. Também pode ser um apartamento desarrumado, alcatifado com fotografias rasgadas e vidro estilhaçado por toda a parte. «O que faço eu agora? Andar descalço no vidro?» A poesia de Rene Ricard (1946-2014) é assim mesmo, ele escreve como quem caminha descalço sobre o vidro e os seus versos são sangue a escorrer de chagas insanáveis. Filho de um Deus de Revólver, este Cristo mete o cano na boca e faz-lhe um felácio até que a arma se venha em balas de tinta.
   O nome de Ricard não será estranho a quem esteja familiarizado com o universo warholiano e toda aquela gente que gravitava em torno do pai da Pop Art, entre os quais, a partir de certa altura, um tal de Jean-Michel Basquiat (1960-1988) que Ricard, enquanto crítico de arte, tornou famoso com o artigo «The Radiant Child», publicado em Dezembro de 1981 no Artforum. Vem nos livros, o de Leonard Emmerling, por exemplo, onde a páginas tantas de lê isto: «Conhecido de Andy Warhol, Ricard tinha representado Warhol num filme de 1966, «The Andy Warhol Story», mas mais tarde escreveu algumas críticas com a missão imposta a si próprio de fazer reviver um mundo artístico que ele acreditava estar moribundo. Ricard colocou o trabalho de Basquiat numa tradição maior da história de arte, fazendo paralelismos com Twombly e Jean Dubuffet».
   Acerca desse mundo artístico moribundo leia-se o hino à pintura intitulado «O Juramento de Bandeira», incluído neste “Deus de Revólver” (Barco Bêbado, Setembro de 2023) traduzido por Luís Lima. O prefácio de Raymond Foye (1957) dá-nos conta, no entanto, de uma figura com altos (muito altos) e baixos (do mais baixo que possa imaginar-se), a ponto de, no final da década de 1980, se encontrar «num estado lastimável. Depois de ter ateado fogo ao seu apartamento, andava a dormir no metro, sujo, subnutrido, com problemas de pele» (p. 8). A fotógrafa Rita Barros (Lisboa, 1957), autora das fotografias de capa e contracapa desta edição, capturadas no Lux-Frágil, foi uma das almas que lhe deu a mão.
   Mas vamos aos poemas, dispersos desde a década de 1960 por várias revistas e antologias independentes, posteriormente reunidos nos volumes “Rene Ricard 1979-1980” (1979), “God With Revolver: Poems 1979-1982” (1989), “Trusty Sarcophagus Co.” (1990) e “Love Poems” (1999). Diz Raymond Foye, responsável pela sua segunda colectânea, aquela que agora nos chega em versão portuguesa: «Os poemas da Antologia Grega foram o seu modelo primário e ideal, e os versos de “Deus de Revólver” são, como esses, satíricos, elegíacos, homo-eróticos, epigramáticos e, simultaneamente, elegantes e rudes» (p. 11). Subscreveria com a excepção do satírico, adjectivo que me parece inadequado numa poesia essencialmente autobiográfica, por vezes autocrítica à laia de autoflagelação: «Tornei-me tão corrupto» (p. 22).
   O que une os dois volumes coligidos neste livro é o elogio de uma juventude eterna, entendida nesse sentido de efervescência das paixões e vontade de transformação, a juventude que se revolta descontinuadamente para continuadamente percorrer os labirintos críticos da experiência, da aventura, do desejo. O tema central, a raiz mais profunda, talvez seja o amor, título da colectânea de 1999, mas um amor carnal, movido pela paixão e atacado por traições e infidelidades. Não é o amor contemplativo dos românticos, é um amor homoerótico assumidamente desviante, campo minado de todas as convenções da lírica amorosa: «Estivemos juntos / três anos / Parecia um bocado / mas nesse / instante / ele disse-me / que eu era / velho / que o meu corpo não / valia nada / e que o meu / caralho era / nojento / eu daria / ainda / inteira / a minha vida / pelo seu» (p. 62). Outro exemplo deveras elucidativo desta disrupção lírica é o pequeno poema intitulado «Carta de Amor»: «Seu malvado filho da puta / Não vês o quão doente / me deixas. Porque não te afastas / de mim odeio-te» (p. 37).
   O amor sagrado na poesia de Rene Ricard é a pintura, não os artistas, não a arte e os seus mecanismos comerciais, mas a pintura ela mesma, cantada nesse hino a que já fiz referência e em poemas evocativos de artistas com quem Ricard colaborou, como o da página 48 sobre uma litografia de Robert Hawkins. Estes poemas ligam-se a uma outra face relevante desta poesia, a reiteração de memórias traumáticas, libertadas de um modo mais ou menos expressionista para desacreditação da bondade humana, como essa que surge a páginas 24 e reaparece a páginas 78, no primeiro caso apoiada também pela imagem de uma pintura que servirá agora como remate:
 
OS DOIS IRMÃOS
 
Na pintura de Picasso
Os Dois Irmãos o mais velho
carrega o mais novo nos
ombros.    Agora
Louie e o seu irmão mais velho
estão a tentar matar-me
Nunca tive ninguém para
me proteger
Quando eu tinha 12 anos
O meu irmão mais velho
fez-me chupar
um carro cheio de gajos.

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