domingo, 31 de dezembro de 2023

ONDE É QUE ESTAMOS A COMER?

 


Em 1966, o Portugal retrógrado da ditadura recebeu a Merce Cunningham and Dance Company para uma digressão que andou pelo Tivoli, Teatro Gil Vicente, Cinema Império, etc. As reacções foram o que será hoje fácil de imaginar para quem tenha um mínimo de noção do atraso de vida em que estávamos mergulhados, não só pela total impreparação diante das coreografias de Cunningham e da música de John Cage, mas também por aspectos técnicos devidamente documentados num artigo de João dos Santos Martins que acompanha, à laia de posfácio, a edição deste “Onde é que estamos a comer? E o que é que estamos a comer” (Douda Correria, Novembro de 2023). Além do mais, era a primeira vez que o público nacional assistia a «um bailarino de cor» a partilhar o palco com pessoas brancas. Em plena Guerra Colonial, tanto O Comércio do Porto como o DN não deixaram escapa esse extraordinário acontecimento. Os textos de John Cage coligidos neste volume delicioso traduzido por Nuno Marques são uma espécie de apontamentos de digressão, prestando especial atenção aos comes e bebes que alimentavam a companhia. Na introdução, Cage coloca-nos a par dos seus tormentos pessoais provocados por uma alimentação desregulada: «Os bailarinos são fornalhas. Queimam tudo o que comem. Por seu lado os músicos não são fornalhas eficientes: passam muito tempo sentados.» Resultado: artrites, abcessos, dores, intoxicações, pulsos inchados e etc. Nada que uma mudança rigorosa de dieta não ajude a corrigir. Felizmente, os textos são anteriores à dieta. Oferecem-nos excelentes ideias para petiscos, mesmo quando documentam as conjugações mais inusitadas. Pelo meio, percorrendo gastronomias muito diversas em cidades muito distantes umas das outras, também assomam curiosidades: «Em casa comendo uma galinha ao jantar, / o Victor Hamburguer contou o trabalho que fazia / com as galinhas. Altera-lhes os embriões / para que quando os pintos nasçam tenham / mais ou menos penas ou olhos, por exemplo, / e que os tenham em sítios diferentes / do que as galinhas normais» (p. 12) Não fiquem chocados, é apenas poesia. Uma dimensão especialmente interessante neste livro, para lá da curiosidade documental sobre uma digressão e um dos seus aspectos (o regime alimentar é fulcral para a produção artística), é o receituário que oferece ao leitor e o modo como o faz acompanhar de sugestivos elementos para a organização de almoços, jantares, piqueniques. Não é um manual, mas podia ser: «A preparar um piquenique no quarto de hotel. / Frango, marinado em limão e sake, / embrulhado em alumínio, deixado durante a noite, / no dia seguinte mergulhado em óleo de sésamo e grelhado no cavão. / Os brócolos, fatiados, foram distribuídos / por vinte e cinco caixas com gengibre, o milho / ainda nas espigas mas sem folhas, / envolvido em manteiga e embrulhado. / Vendo que a banheira estava cheia de salada, / o David disse, “Não quero cabelos na minha comida.” / Para além da carne assada e queijo em pão de centeio, / o Robert comeu uns biscoitos integrais, uma laranja / amarga de Jaffa, uma banana e tarte de maçã. / O sumo fermentado e pegajoso de maracujá do David / rebentou como um géiser a caminho de Grenoble. / Limpou-se o chão do autocarro e as malas e abriram-se as / janelas. E o sumo rebentou outra vez» (p. 22). Lamentavelmente, a passagem por Portugal aparece referida de um modo bastante lacónico. Ficamos na curiosidade acerca dos acepipes com que foram brindados os senhores Cunningham, Cage e companhia. Talvez com cozido à portuguesa ou uma das 1001 maneiras de fazer bacalhau, pão e vinho sobre a mesa, pastéis de nata a rematar. Inclinamo-nos menos para os coentros e os rabanetes, a sardinha para três, broa de milho com azeitonas, tendo em conta a bela mesa que o Jornal de Letras não deixou de divulgar em Novembro de 1967. Lá estão sentados Manuel de Lima, John Cage, Ana Hatherly, Merce Cunningham, Nelson di Maggio, Máio Cesariny, Ricarte-Dácio, David Tudor, Rui Mário Gonçalves. Não se informa quem pagou a conta, mas metemos as fixas no malogrado Ricarte-Dácio.

1 comentário:

Lá em cima está o tiroliroliro disse...

O "Jornal de Letras" só começou a ser publicado em 1981, a fotografia com essa gente toda saiu no "Jornal de Letras e Artes" dirigido por Azevedo Martins e propriedade da editora Lux