quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

UM POEMA DE MIGUEL SERRAS PEREIRA

 


NUM BAR DE PRAIA
FORA DA ESTAÇÃO
(Foz do Arelho, anos 90)
 
*
Si je vous le disais pourtant, que je vous aime…
Alfred de Musset
*
 
Talvez não fosse só porque um dia morreríamos
apesar de por vezes o lembrarmos
como teríamos de admitir não tardaria
à cautela velando embora
de uma nota de melancólica ironia
a voz ao confessá-lo
mas a verdade é que de súbito voltavam
como que desde sempre à nossa espera
após mais uma noite em branco a bordo
do ventre da baleia
vinte ou vinte e cinco anos
de amor febril regado desde a véspera
de Stout copiosamente intervalada
por breves tragos de genebra velha
 
E os dois ali estávamos à mesa
de um bar de praia fora de estação
onde se bem que tendo finalmente
voltado a ver-nos sem sabermos
se era o prelúdio ou a coda o que tocávamos
já tanto me arrasara o tanto atraso
que não me resolvia a pegar na tua mão
e dizia-me depois por um momento
que bem vistas as coisas não seria
inteiramente absurdo
pescar um pouco em águas turvas
e ensaiar uma breve digressão
sobre o voo das aves da lagoa
ou do eco outrora no seu grito
do estertor surdo na memória
talvez de deus nas vascas da agonia
 
Entretanto tu vias já as horas no relógio
porque ouviras de súbito na estrada
ranger os pneus de um automóvel
como nós daí a pouco
intempestivamente de partida
e falhava-me a voz só de imaginar
o que a seguir viria
se não fiado somente no acaso
mas antes sob o hipnótico efeito fulgurante
de um verso de musset
menos mal adequado à circunstância
me ouvisses sem mais como nem porquê
perguntar-te afinal como seria
se todavia eu to dissesse, que te amava
 
Assim adiei o dar-te a conhecer
para outra e mais segura ocasião
a tradução do verso bem amado
resignado a emendar a mão
e a mudar o caminho da conversa
hesitando suspenso
do ondular do teu olhar incandescente
que de tão vago ao mesmo tempo
não sei se me incitava ou me tolhia
enquanto me escutavas
ou tranquilamente respondias
e só o teu sorriso me provava
entre duas frases quase distraídas
que não te surpreendia afinal demasiado
veres como bem vias que nos pratos
ainda intacto o almoço arrefecia
 
Mas não vias nem eu que já ali ficara
definitivamente indecisa a minha vida
 
Miguel Serras Pereira, in “À Tona do Vazio & Reprise – Cinquenta anos de poesia de Miguel Serras Pereira, 1969-2019”, com prefácio da 1.ª edição por Emanuel Cameira, prefácio da 2.ª edição por Ricardo Marques,  Barricada de Livros, 2.ª edição, 2022, pp. 45-48.

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