domingo, 7 de janeiro de 2024

UM POEMA DE ANTÓNIO FERRA

 


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Da primeira vez que mastiguei pão, a boca amoleceu,
a saliva expandiu-se, amalgamou-se numa pasta,
e logo iniciei movimentos de maxilar e dentes.
Era um exercício de prazer. A deglutição era macia
e experimentei uma sensação de tranquilidade.
Talvez fosse capaz de fazer mal a quem ousasse 
privar-me da dependência deste narcótico.

O pão de trigo era branco como são brancos todos 
os princípios.

As minhas mãos moviam-se, hesitantes, na carícia
do pão ainda quente, na ânsia da mastigação para
preencher um certo vazio.
Antes do primeiro pão de trigo nem sequer sabia
exactamente onde morava a fome do meu corpo,
tenso de tanto esperar o glúten.
Só mais tarde vim a saber que um campo de trigo
onde me escondia era a origem desse pão benigno.
Um dia, quando vi o moinho a triturar os grãos
por meio de uma pedra enorme e redonda, percebi
que a energia da água percorria também o meu
corpo com uma frescura inesperada, num jogo de
movimentos e temperaturas.
Guardei sempre na memória o olhar sábio do
moleiro que nunca me dirigiu a palavra, apenas
me lançava, de onde a onde, um olhar que me
atemorizava.

António Ferra, in A Primeira Pedra, edição do autor, Abril de 2023, s/p.

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