«O artista estava a morrer de sede. Encheu um copo de
água, pegou no copo, levou-o à boca e começou a beber. Sentindo algo estranho a
escorrer-lhe pela garganta, interrompeu o trago e pousou o copo. Olhou-o,
perscrutou-o, verificou que lhe faltava um pouco de vidro. Ao copo. No entanto,
continuava cheio. Nem um pingo de água a menos. Mais estranho era a água não
verter pelo pedaço de vidro em falta, como se estivesse congelada. Não estava.
Conservava-se no estado líquido natural, ele remexeu-a com o dedo para se
certificar. Voltou a levar o copo à boca e a mesma sensação se repetiu. Olhou
de novo para o copo, desta feita sem o pousar, aproximado os olhos e rodando-os
sobre uma das mãos. Faltava mais um pedaço de vidro. Bebeu mais um gole. Novo
teste. Concluiu não estar a beber água, matava a sede com vidro, o vidro de um
copo que se desfazia quando era levado à boca. Incrível era a água não
desaparecer, manter-se intacta. Por vezes o artista sentia-se desconfortável,
aquela sensação de haver sido trocado, de não estar bem consigo mesmo, de haver
uma cisão qualquer, um corte, um lapso, um hiato, uma fenda entre si e o seu
corpo, entre o corpo e a mente que o corpo albergava, entre os pensamentos e o
resto, a carne, os ossos, a máquina. Talvez fosse defeito, um qualquer defeito
de nascença. Mas agora isto, um copo a desfazer-se na boca, liquefazendo-se
pela garganta como se água fosse. Ter sido trocado, não à nascença, mas a meio
do percurso, era a hipótese que se afigurava mais verosímil. Que idade teria
quando se deu a troca, em que momento se desviara de si mesmo? E agora, o que
era ele: o copo ou a água, o recipiente ou o conteúdo, a forma, o recheio? Não
sabia. Só estava certo de que a sede continuava e por isso beberia o copo até
ao fim, até ficar diante de uma porção de água com a forma de copo. Como que
sólido em estado líquido, todo ele dentro, interior, nada de fora, nada de
corpo, nada de copo.»
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