CARTA ESCRITA DE ÁFRICA EM RESPOSTA À DE UM AMIGO
Mandaste-me pedir novas,
E pois hei-de obedecer,
[E] quero que seja em trovas
Por vos dar em que entender;
E que esta arte de trovar
Se vá desacostumando
A quem anda como eu ando,
Tudo se há-de perdoar.
Leixando todo o embaraço
Desde o dia que cá vim,
Vos darei conta de mim
E da vida que cá faço;
E julga o que cá sento
Do que lá sentiria,
Se algῦa hora ou algum dia
Tive este tal pensamento.
Acho-me mui enganado
Dum engano que trazia,
Não cuidei que num cuidado
Tantos cuidados havia;
Cuidei que vida mudada
Mudasse também ventura;
Mas a má sempre é segura,
E da boa não sei nada.
E pois que já comecei,
Dar-vos-ei conta comprida
De como passo a vida
Nesta vida que tomei:
Vou-me ao longo da praia
Sem outros ricos petrechos:
Una adarga até pechos
Y en la mano una azagaya.
Faço no meu pensamento
Mais torres que as de Almeirim,
Mas enfim leva-as o vento,
Porque são ventos enfim;
Vou-me trás isto em que ando
Quando a tormenta mais arde,
Suspirando a menudo,
Hablando de tarde en tarde.
Fujo da conversação,
Anoja-me companhia
E trago os olhos no chão,
E mui alta a fantesia;
Dês que vou alongando,
Que me não podem ouvir,
Las vozes que iba dando,
Al cielo quieren subir.
Vejo desfeitos em vão
Todolos meus contentamentos
Porém os meus pensamentos
Não cansam, nem cansarão;
S’alma, mais que a vida,
Mais que a vida há-de durar,
Maldita seas ventura,
Que así me aces andar.
Cuido no que é já passado
E no que está por passar,
Porém nunca o meu cuidado
Se muda dum só lugar:
Quando em mim torno cuidando
Que de mi mesmo me velo,
Los ojos puestos nel cielo
Jurando iba echando.
Vejo o mar embravecer,
Vejo que depois melhora,
Mil cousas vejo cada hora,
Ũa só não posso ver;
Assim vou passando o dia
Nesta saudade tamanha,
Mirando la mar de España
Como menguava e crecía.
Quem disser que a saudade
É vida pera gabar,
Se o disser de verdade,
di-lo-á pra me enojar.
Vida que a alma entristece
Em que toda a dar consiste,
El día que há de ser triste,
Para mí solo amañece.
Crede-me quanto mais falo,
Pois vos falo como amigo,
E crede que o que calo
É muito mais que o que digo.
Ando com alma cansada,
Suspirando cada hora
Por el tu amor sem tí ora
Pasé yo la mar salada.
Andando só, como digo,
Apartado da manada,
Fazendo contas comigo
Que enfim não fundem nada,
Querendo buscar atalho
Pera vir ao que desejo,
Vi venir pendon bermejo
Com trescientos de caballo.
Vinham de esporas douradas
E vestidos de alegria,
Com adargas e braçados
La flor de la Berberia,
Com gritos e altas vozes
Vinham a rédeas tendidas,
Ricas aljubas vestidas
En cima sus albornozes.
Gentes de muitas maneiras
E [de] diversas nações
Corriam a estas tranqueiras,
Como a ganhar perdões;
Mas porque vos não engane
Cousas que outros vos escrevam,
Los bordones que ellos llevan,
Lanzas vos pareceranne.
Tudo anda de levanto,
Era o campo todo cheio,
Em tudo punham espanto,
De nada tinham receio;
Com grandes vozes e festas
Vinham bradando de lá:
Caballeros de Alcalá
No os alabaréis daquesta.
Comigo mesmo falando,
Como se a outrem falasse
Dezia quem me lembrasse
Do em que andava cuidando;
E porque tamanho dote
Não se alcança por cuidar,
A las armas Moriscote,
S’in ellas queréis entrar.
Contar feitos esquecidos,
É muito contra minh’arte,
Houve mortos e feridos,
Houve mal de parte a parte,
Houve homem que dezia
Na força do mor receio,
Donde estás que no te veo,
Qu’es de tí esperanza mía.
Pois falo em tão fraca guerra,
Sinal é de vosso amigo,
Visto como estais em terra,
Que há outras de mor perigo;
E pois por vós mais fizera
Quem faz isto que aqui vedes,
Y que nuevas me traedes
Del mim amor que allá era?
Quisera-vos dezer mais,
E pois vos não digo tudo,
Farei conta que sou mudo
E entendei-me por sinais;
Que se fosse tão ousado,
Que inda mais que isto dissesse,
A que muerte condenado
Pudo ser que grave fuese.
Luís de Camões (1524? – 1580?)
E pois hei-de obedecer,
[E] quero que seja em trovas
Por vos dar em que entender;
E que esta arte de trovar
Se vá desacostumando
A quem anda como eu ando,
Tudo se há-de perdoar.
Desde o dia que cá vim,
Vos darei conta de mim
E da vida que cá faço;
E julga o que cá sento
Do que lá sentiria,
Se algῦa hora ou algum dia
Tive este tal pensamento.
Dum engano que trazia,
Não cuidei que num cuidado
Tantos cuidados havia;
Cuidei que vida mudada
Mudasse também ventura;
Mas a má sempre é segura,
E da boa não sei nada.
Dar-vos-ei conta comprida
De como passo a vida
Nesta vida que tomei:
Vou-me ao longo da praia
Sem outros ricos petrechos:
Una adarga até pechos
Y en la mano una azagaya.
Mais torres que as de Almeirim,
Mas enfim leva-as o vento,
Porque são ventos enfim;
Vou-me trás isto em que ando
Quando a tormenta mais arde,
Suspirando a menudo,
Hablando de tarde en tarde.
Anoja-me companhia
E trago os olhos no chão,
E mui alta a fantesia;
Dês que vou alongando,
Que me não podem ouvir,
Las vozes que iba dando,
Al cielo quieren subir.
Todolos meus contentamentos
Porém os meus pensamentos
Não cansam, nem cansarão;
S’alma, mais que a vida,
Mais que a vida há-de durar,
Maldita seas ventura,
Que así me aces andar.
E no que está por passar,
Porém nunca o meu cuidado
Se muda dum só lugar:
Quando em mim torno cuidando
Que de mi mesmo me velo,
Los ojos puestos nel cielo
Jurando iba echando.
Vejo que depois melhora,
Mil cousas vejo cada hora,
Ũa só não posso ver;
Assim vou passando o dia
Nesta saudade tamanha,
Mirando la mar de España
Como menguava e crecía.
É vida pera gabar,
Se o disser de verdade,
di-lo-á pra me enojar.
Vida que a alma entristece
Em que toda a dar consiste,
El día que há de ser triste,
Para mí solo amañece.
Pois vos falo como amigo,
E crede que o que calo
É muito mais que o que digo.
Ando com alma cansada,
Suspirando cada hora
Por el tu amor sem tí ora
Pasé yo la mar salada.
Apartado da manada,
Fazendo contas comigo
Que enfim não fundem nada,
Querendo buscar atalho
Pera vir ao que desejo,
Vi venir pendon bermejo
Com trescientos de caballo.
E vestidos de alegria,
Com adargas e braçados
La flor de la Berberia,
Com gritos e altas vozes
Vinham a rédeas tendidas,
Ricas aljubas vestidas
En cima sus albornozes.
E [de] diversas nações
Corriam a estas tranqueiras,
Como a ganhar perdões;
Mas porque vos não engane
Cousas que outros vos escrevam,
Los bordones que ellos llevan,
Lanzas vos pareceranne.
Era o campo todo cheio,
Em tudo punham espanto,
De nada tinham receio;
Com grandes vozes e festas
Vinham bradando de lá:
Caballeros de Alcalá
No os alabaréis daquesta.
Como se a outrem falasse
Dezia quem me lembrasse
Do em que andava cuidando;
E porque tamanho dote
Não se alcança por cuidar,
A las armas Moriscote,
S’in ellas queréis entrar.
É muito contra minh’arte,
Houve mortos e feridos,
Houve mal de parte a parte,
Houve homem que dezia
Na força do mor receio,
Donde estás que no te veo,
Qu’es de tí esperanza mía.
Sinal é de vosso amigo,
Visto como estais em terra,
Que há outras de mor perigo;
E pois por vós mais fizera
Quem faz isto que aqui vedes,
Y que nuevas me traedes
Del mim amor que allá era?
E pois vos não digo tudo,
Farei conta que sou mudo
E entendei-me por sinais;
Que se fosse tão ousado,
Que inda mais que isto dissesse,
A que muerte condenado
Pudo ser que grave fuese.
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