sábado, 17 de fevereiro de 2024

DAR ÀS COUSAS QUE VIA OUTRO SENTIDO

 


Vinde cá, meu tão certo secretário
Dos queixumes que sempre ando fazendo,
Papel, com quem a pena desafogo!
As sem-razões digamos, que vivendo,
Me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Lancemos água pouca em muito fogo;
Acenda-se com gritos um tormento
Que a todas as memórias seja estranho.
     Digamos mal tamanho
A Deus, ao Mundo, à gente, e, enfim, ao vento,
A quem já muitas vezes o contei,
Tanto debalde como o conto agora;
Mas, já que pera errores fui nacido,
Vir este a ser um deles não duvido.
E, pois já de acertar estou tão fora,
Não me culpem também se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
Falar e errar, sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
 
Já me desenganei que de queixar-me
Não se alcança remédio; mas quem pena
Forçado lhe é gritar, se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
A voz pera poder desabafar-me,
Porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará, sequer, que fora mande
Lágrimas e suspiros infinitos,
Iguais ao mal que dentro na alma mora?
     Mas quem pode alga hora
Medir o mal com lágrimas ou gritos?
Direi, enfim, aquilo que me ensinam
A ira, a mágoa, e delas a lembrança,
Que outra dor é por si mais dura e firme.
Chegai, desesperados, pera ouvir-me,
E fujam os que vivem de esperança,
Ou aqueles que nela se imaginam,
Porque Amor e Fortuna determinam
De lhes deixar poder pera entenderem,
À medida dos males que tiverem.
 
Quando vim da materna sepultura
De novo ao Mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
Com ter livre alvedrio, mo não deram;
Que eu conheci mil vezes na ventura
O milhor e o pior segui, forçado.
E pera que o tormento conformado
Me desse coa idade, quando abrisse,
Inda minino, os olhos, brandamente,
     Mandam que, diligente,
Um Minino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
Com a saudade namorada;
O som dos gritos, que no berço dava,
Já como de suspiros me soava.
Coa idade o Fado estava concertado:
Porque, quando, por ‘caso, me embalavam,
Se de Amor tristes versos me cantavam,
Logo me adormecia a natureza,
Que tão conforme estava coa tristeza.
 
Foi minh’alma a fera; que o Destino
Não quis que mulher fosse a que tivesse
Tal nome pera mim; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
O veneno amoroso de minino,
Que na maior idade beberia,
E, por costume, não me mataria.
Logo então vi a image e semelhança
Daquela humana fera tão fermosa,
     Suave e venenosa,
Que me criou aos peitos da esperança,
De quem eu vi depois o original,
Que de todos os grandes desatinos
Faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
Mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal,
Que se vangloriava todo o mal
Na vista dela; a sombra, coa viveza,
Excedia o poder da Natureza.
 
Que género tão novo de tormento
Teve Amor, sem que fosse não somente
Provado em mim, mas todo executado!
Implacáveis durezas, que ao fervente
Desejo, que dá força ao pensamento,
Tinham de seu propósito abalado,
E corrido de ver-se e injuriado;
Aqui, sombras fantásticas, trazidas
Dalgas temerárias esperanças;
     As bem-aventuranças
Também nelas pintadas e fingidas.
Mas a dor do desprezo recebido,
Que todo o fantasiar desatinava,
Estes enganos punha em desconcerto.
Aqui o adivinhar e o ter por certo
Que era verdade quanto adivinhava,
E logo o desdizer-me, de corrido;
Dar às cousas que via outro sentido,
E pera tudo, enfim, buscar rezões;
Mas eram muitas mais as sem-rezões.
 
Não sei como sabia estar roubando,
Cos raios, as entranhas, que fugiam
Pera ela por os olhos sotilmente!
Pouco a pouco invisíveis me saíam,
Bem como do véu húmido exalando
Está o sotil humor o Sol ardente.
O gesto puro, enfim, e transparente,
Pera quem fica baixo e sem valia
Este nome de belo e de fermoso;
     O doce e piadoso
Mover de olhos, que as almas suspendia,
Foram as ervas mágicas que o Céu
Me fez beber; as quais, por longos anos,
Noutro ser me tiveram transformado,
E tão contente de me ver trocado
Que as mágoas enganava cos enganos;
E diante dos olhos punha o véu,
Que me encobrisse o mal, que assi creceu,
Como quem com afagos se criava
Daquela pera quem crecido estava.
 
Pois quem pode pintar a vida ausente,
Com um descontentar-me quanto via,
E aquele estar tão longe de onde estava;
O falar sem saber o que dezia;
Andar sem ver por onde, e juntamente
Suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquele mal me atormentava,
E aquela dor, que das tartáreas águas
Saiu ao Mundo, e mais que todas dói,
     Que tantas vezes sói
Duras iras tornar em brandas mágoas;
Agora, co furor da mágoa irado,
Querer e não querer deixar de amar;
E mudar noutra parte, por vingança,
O desejo, privado de esperança,
Que tão mal se podia já mudar;
Agora a saudade do passado
Tormento, puro, doce e magoado,
Que converter fazia estes furores
Em magoadas lágrimas de amores?
 
Que desculpas comigo só buscava,
Quando o suave Amor me não sofria
Culpa na cousa amada, e tão amada!
Eram, enfim, remédios que fingia
O medo do tormento, que ensinava
A vida a sustentar-se de enganada.
Nisto a parte dela foi passada,
Na qual, se tive algum contentamento,
Breve, imperfeito, tímido, inocente,
     Não foi senão semente
Dum comprido, amaríssimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
Estes passos vãmente derramados,
Me foram apagando o ardente gosto,
Que tão de siso n’alma tinha posto,
Daqueles pensamentos namorados
Com que criei a tenra natureza,
Que, do longo costume da aspereza,
Contra quem força humana não resiste,
Se converteu no gosto de ser triste.
 
Destarte a vida em outra fui trocando;
Eu não, mas o destino fero, irado,
Que eu, inda assi, por outra a não trocara.
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
Passando o longo mar, que ameaçando
Tantas vezes me esteve a vida cara.
Agora exp’rimentando a fúria rara
De Marte, que nos olhos quis que logo
Visse e tocasse o acerbo fruito seu.
     E neste escudo meu
A pintura verão do infesto fogo.
Agora, peregrino, vago, errante,
Vendo nações, linguagens e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
Só por seguir com passos diligentes
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando-lhes diante
Ũa esperança em vista de diamante,
Mas, quando as mãos cai, se conhece
Que é frágil vidro aquilo que aparece.
 
A piedade humana me faltava,
A gente amiga já contrária via,
No perigo primeiro; e no segundo,
Terra em que pôr os pés me falecia,
Ar pera respirar se me negava,
E faltava-me, enfim, o Tempo e o Mundo.
Que segredo tão árduo e tão profundo:
Nacer pera viver, e pera a vida
Faltar-me quanto o mundo tem pera ela!
     E não poder perdê-la,
Estando tantas vezes já perdida!
Enfim, não houve transe de fortuna,
Nem perigos, nem casos duvidosos,
Injustiças (daqueles que o confuso
Regimento do mundo, antigo abuso,
Faz sobre os outros homens poderosos),
Que eu não passasse, atado à fiel coluna
Do sofrimento meu, que a importuna
Perseguição de males em pedaços
Mil vezes fez, à força de seus braços.
 
Não conto tanto os males, como aquele
Que, depois da tormenta procelosa,
Os casos dela conta em porto ledo;
Que inda agora a Fortuna flutuosa
A tamanhas misérias me compele,
Que de dar um só passo tenho medo.
Já de mal que me venha não me arredo,
Nem bem que me faleça já pretendo,
Que pera mim não vale astúcia humana;
     Da força soberana,
Da Providência, enfim, divina pendo.
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
Pera consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
Os olhos no que corre e não alcança
Senão memória dos passados anos,
As águas que então bebo e o pão que como
Lágrimas tristes são, que eu nunca domo,
Senão com fabricar na fantesia
Fantásticas pinturas de alegria.
 
Que, se possível fosse que tornasse
O tempo pera trás, como a memória,
Pelos vestígios da primeira idade,
E, de novo tecendo a antiga história
De meus doces errores, me levasse
Pelas flores que vi da mocidade;
E a lembrança da longa saudade
Então fosse maior contentamento,
Vendo a conversação leda e suave
     Onde a e outra chave
Esteve de meu novo pensamento,
Os campos, as passadas, os sinais,
A vista, a neve, a rosa, a fermosura,
A graça, a mansidão, a cortesia,
A singela amizade, que desvia,
Toda a baixa tenção, terrena, impura,
Como a qual outra alga não vi mais…
Ah! vãs memórias! onde me levais
O débil coração, que inda não posso
Domar bem este vão desejo vosso?
 
No mais, Canção, no mais; que irei falando,
Sem o sentir, mil anos. E se acaso
Te culparem de larga e de pesada,
Não pode ser (lhe diz) limitada
A água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
Co gosto do louvor, mas explicando
Puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!
 
Luís de Camões (1524? – 1580?)


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