domingo, 18 de fevereiro de 2024

MÁQUINA FANTÁSTICA

 

Conta-se que ao ver a encenação da sua coroação filmada por Meliés, o rei de Inglaterra terá exclamado: «Que máquina fantástica!» Capaz de mostrar tudo, até o que não aconteceu. Só o rei era real, tudo o mais era cenário e actores franceses. Em 1962, no magnífico “The man who shot Liberty Valance” — e repare-se no duplo significado de shot — o mestre John Ford ofereceu-nos a maior desmontagem da sua própria arte, com aquela cena final em que os homens da imprensa discutem a melhor forma de dar uma notícia. A mais vantajosa. Optaram por queimar a verdade da história sobre quem havia, de facto, matado Liberty Valance, pois sabiam que quando a lenda se torna um facto é a lenda que deve ser impressa. Eis-nos no pântano da manipulação dos factos, da informação, das imagens que sustentam os factos. Chegámos a um ponto sem retorno. Das duas hipóteses que restam, nenhuma é especialmente animadora. Ou engolimos tudo acriticamente ou não acreditamos em nada. Temo que faltem filtros, o sentido crítico que oferece distanciamento e instaura a dúvida interrompendo o fluxo da mentira. Já não se trata de distinguir o verdadeiro do falso, a verdade da mentira, mas tão só do modo como lidamos com as nossas percepções sob o fogo cruzado das perspectivas subjectivas de quem dispara o que é vendido como informação. Ou acreditamos e somos ludibriados, aldrabados, ou não acreditamos em nada e ficamos isolados, embrutecidos. O mais normal será a paranóia, a teoria conspirativa ao rubro. Com o advento da Inteligência Artificial isto será sempre a piorar, não há retorno possível. A opção terá de ser a de não confiar em nada que não traga o selo de objecto artístico, porque aí a verdade é inquestionável: sabemos que estamos diante de uma representação, estamos precavidos pelo objecto em si, não mente, não sugere ser uma coisa que não é, não simula nem dissimula, é o que é. O mais, seja na TV, seja na rede, seja em qualquer outro suporte, é e será cada vez mais objecto de desconfiança. O que nos coloca um problema terrível na nossa relação com a verdade, na nossa relação de confiança com o jornalismo, por exemplo, cada vez mais também sujeito à encenação espectacular que o consumismo desenfreado promove e as audiências determinam. Está desbravado o caminho por onde a mentira desfilará com pompa e circunstância.

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