Conta-se que ao ver a encenação
da sua coroação filmada por Meliés, o rei de Inglaterra terá exclamado: «Que
máquina fantástica!» Capaz de mostrar tudo, até o que não aconteceu. Só o rei
era real, tudo o mais era cenário e actores franceses. Em 1962, no magnífico “The
man who shot Liberty Valance” — e repare-se no duplo significado de shot — o
mestre John Ford ofereceu-nos a maior desmontagem da sua própria arte, com
aquela cena final em que os homens da imprensa discutem a melhor forma de dar
uma notícia. A mais vantajosa. Optaram por queimar a verdade da história sobre
quem havia, de facto, matado Liberty Valance, pois sabiam que quando a lenda se
torna um facto é a lenda que deve ser impressa. Eis-nos no pântano da manipulação
dos factos, da informação, das imagens que sustentam os factos. Chegámos a um
ponto sem retorno. Das duas hipóteses que restam, nenhuma é especialmente
animadora. Ou engolimos tudo acriticamente ou não acreditamos em nada. Temo que
faltem filtros, o sentido crítico que oferece distanciamento e instaura a
dúvida interrompendo o fluxo da mentira. Já não se trata de distinguir o
verdadeiro do falso, a verdade da mentira, mas tão só do modo como lidamos com
as nossas percepções sob o fogo cruzado das perspectivas subjectivas de quem
dispara o que é vendido como informação. Ou acreditamos e somos ludibriados,
aldrabados, ou não acreditamos em nada e ficamos isolados, embrutecidos. O mais
normal será a paranóia, a teoria conspirativa ao rubro. Com o advento da
Inteligência Artificial isto será sempre a piorar, não há retorno possível. A
opção terá de ser a de não confiar em nada que não traga o selo de objecto
artístico, porque aí a verdade é inquestionável: sabemos que estamos diante de
uma representação, estamos precavidos pelo objecto em si, não mente, não sugere
ser uma coisa que não é, não simula nem dissimula, é o que é. O mais, seja na
TV, seja na rede, seja em qualquer outro suporte, é e será cada vez mais
objecto de desconfiança. O que nos coloca um problema terrível na nossa relação
com a verdade, na nossa relação de confiança com o jornalismo, por exemplo,
cada vez mais também sujeito à encenação espectacular que o consumismo
desenfreado promove e as audiências determinam. Está desbravado o caminho por
onde a mentira desfilará com pompa e circunstância.
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