sexta-feira, 15 de março de 2024

DIZ ANTÓNIO GUERREIRO

(…)

Há mais de um milhão de pobres e excluídos racistas e xenófobos? É muito fácil perceber que, potencialmente (e essa classificação apenas com base no sentido de voto não é legítima nem correcta), há certamente ainda muitos mais. Não por convicção ideológica racionalizada, mas porque habitam no interior de uma cultura que promove a condição de possibilidade do extremismo político.
No interior do Alentejo (para me ater à experiência pessoal), o racismo contra os ciganos só tem paralelo com os guetos dos judeus sob as leis raciais do nazismo. É um racismo sem pudor nem censura social e que exige que eles se integrem ao mesmo tempo que os considera não-integráveis. Esta “fobia” não procura razões históricas e sociais: faz do “eterno” cigano, como outrora o eterno judeu, um indivíduo que, por motivos “raciais” e por enraizamento mítico a uma cultura da segregação, é um pária.
Esta nova pobreza eminentemente cultural tem um enorme poder de difusão. O seu modelo não é compatível com uma consciência de classe. Para haver uma “classe” é preciso que intervenha este factor: a solidariedade. Só através da solidariedade a consciência de classe se torna activa e faz com que aquilo que era pura e simplesmente uma massa, uma multidão gregária, passe a ser uma classe. Ora, o que os indivíduos que fazem parte desta massa têm em comum são os interesses privados. E, no fundo, eles não concebem a cidadania senão segundo o modelo do cidadão-painelista, produtor e consumidor de bens e serviços sociopolíticos.
Não, estes novos pobres, na sua maioria, não têm nada em comum com os antigos “pobrezinhos” nem com uma cultura popular, e só por altura de eleições é que se tornam politicamente representáveis. No resto do tempo são a realização concreta e definitiva da mediocridade, do estilo de vida mais contagioso e exportável.

Público, 15 de Março de 2024.

2 comentários:

Transhümantes disse...

EM cheio! E este mais de um milhão de pobres que é muito mais de dois e três nem sabem que o são. Não sabem como se chama a sua pobreza e por isso tratam-na por apelidos e alcunhas quando se referem uns aos outros.

Aquilo que têm é muito mais do que aquilo que são, muito mais.

Ninguém compra a humildade nem a integridade porque são inconvertíveis em produtos de consumo, segundo parece.

Abraço!

Filipe Bastos disse...

Para haver uma “classe” é preciso que intervenha este factor: a solidariedade.

Verdade, mas é difícil sermos solidários com quem, mais do que ser diferente de nós, amiúde age contra nós.

Esse Alentejo de que fala é mais abertamente anti-ciganos porque 1) pelo seu isolamento e pela sua cultura (ou falta dela) é mais imune (ou indiferente) ao politicamente correcto; e 2) porque é forçado a conviver com eles. É este 2º ponto que custa tanto à esquerda de hoje admitir.

Porquê os ciganos e não os chineses, os indianos, os finlandeses ou outros? Mero preconceito? Não será que gerações de ciganos bem comportados e integrados, gente civilizada e trabalhadora, ainda que com hábitos diferentes, acabariam com tal preconceito? Serão os alentejanos nazis de chaparro, ku-klux-klanners sem lençol?

O Sr. Autor do post já conviveu com ciganos? Não por uns minutos com um ou dois, mas com muitos durante dias, anos a fio? Sabe como ganham a vida? O que fazem a habitações sociais que lhes são entregues? A violência e intimidação que não hesitam em usar? Sabe o que o espera se tiver algum problema com um indivíduo ou uma família cigana?

Mesmo numa perspectiva de esquerda, eis o problema: os ciganos querem usar só o que lhes interessa da sociedade sem nada contribuírem para ela. Querem frequentar hospitais e andar de BMW, sem jamais pagar impostos ou ter uma profissão. As excepções são isso mesmo.

Pior: hostilizam e atacam quem tenta colocar-lhes limites, por poucos que seja, ou simplemente quem lhes apetece, pois desprezam as regras da sociedade que parasitam. Sentem-se impunes, e geralmente têm razão. Já vi coisas muito graves de ciganos. Muita gente já viu.

E aqui tem boa parte do sucesso do pulha Ventura: não é só alimentar ódios, é também constatar o óbvio que todos os outros se demitem de constatar, ou que até se empenham em desmentir, como se as pessoas fossem todas racistas. Ou parvas. Claro que os ciganos estão longe de ser o nosso maior problema; mas ninguém gosta que o façam de parvo.