sábado, 2 de março de 2024

LUGAR ALEGRE, FRESCO, ACOMODADO

 


Por meio das serras mui fragosas,
Cercadas de silvestres arvoredos,
Retumbando por ásperos penedos,
Correm perenes águas deleitosas.
Na ribeira de Buina, assi chamada,
     Celebrada,
     Porque em prados
     Esmaltados
     Com frescura
     De verdura,
Assi se mostra amena, assi graciosa,
Que excede a qualquer outra mais fermosa;
 
As correntes se vêm, que, aceleradas,
As ervas regalando e as boninas,
Se vão a entrar nas águas neptuninas,
Por diversas ribeiras derivadas.
Com mil brancas conchinhas a áurea areia
     Bem se arreia;
     Voam aves;
     Mil suaves
     Passarinhos
     Nos raminhos
Acordemente estão sempre cantando,
Com doce acento os ares abrandando.
 
O doce rouxinol num ramo canta,
E doutro o pintassilgo lhes responde;
A perdiz dantre a mata, em que se esconde,
O caçador sentindo se levanta:
Voando vai ligeira mais que o vento;
     Outro assento
     Vai buscando;
     Porém, quando
     Vai fugindo;
      Retinindo,
Trás ela mais veloz a seta corre,
De que ferida logo cai e morre.
 
Aqui Progne, de um ramo em outro ramo,
Co peito ensanguentado anda voando,
Cibato pera o ninho indo buscando;
A leda codorniz vem ao reclamo
Do sagaz caçador, que a rede estende,
     E pretende,
     Com engano,
     Fazer dano
     À coitada,
     Que enganada,
Duns esparzidos grãos de louro trigo,
Nas mãos vai a cair de seu imigo.
 
Aqui, soa a calhandra na parreira;
A rola geme; palra o estorninho;
Sai a cândida pomba de seu ninho;
O tordo pousa em cima da oliveira;
Vão as doces abelhas sussurrando
     E apanhando
     O rocio
     Fresco e frio
     Por o prado
     De erva ornado,
Com que o áureo licor fazem, que deu
À humana gente a indústria de Aristeu.
 
Aqui, as uvas luzidas, penduradas
Das pampinosas vides, resplandecem;
As frondíferas árvores se of’recem
Com diferentes fruitos carregadas;
Os peixes n’água clara andam saltando,
     Levantando
     As pedrinhas
     E as conchinhas
     Rubicundas
     Que as jucundas
Ondas consigo trazem, crepitando
Por a praia alva com ruído brando.
 
Aqui, por antre as serras se levantam
Animais calidóneos, e os veados
Na fugida inda mal assegurados,
Porque do som dos próprios pés se espantam.
Sai o coelho, a lebre sai manhosa
     Da frondosa
     Breve mata,
     Donde a cata
     Cão ligeiro;
     Mas primeiro
Que ela ao contrário férvido se entregue,
Às vezes deixa em branco a quem a segue.
 
Luzem as brancas e purpúreas flores,
Com que o brando Favónio a terra esmalta;
O fermoso Jacinto ali não falta,
Lembrando dos antigos seus amores.
Inda na flor se mostram esculpidos
     Os gemidos
     Aqui Flora
     Sempre mora;
     E com rosas
     Mais fermosas,
Com lírios e boninas mil fragrantes,
Alegra os seus amores circunstantes.
 
Aqui Narciso em líquido cristal
Se namora de sua fermosura;
Nele as pendentes ramas da espessura
Debuxando-se estão ao natural.
Adónis, com que a linda Citereia
     Se recreia,
     Bem florido,
     Convertido
     Na bonina,
     Que Ericina
Por imagem deixou de qual seria
Aquele por quem ela se perdia.
 
Lugar alegre, fresco, acomodado
Pera se deleitar qualquer amante,
A quem com sua ponta penetrante
O cego Amor tivesse derrubado;
E pera memorar ao som das águas
     Suas mágoas
     Amorosas,
     As cheirosas
     Flores vendo,
     Escolhendo,
Pera fazer preciosas mil capelas,
E dar por grão penhor a ninfas belas.
 
Eu delas, por penhor de meus amores,
Ũa capela à minha deusa dava;
Que lhe queria bem, bem lhe mostrava
O bem-me-queres antre tantas flores;
Porém, como se fora malmequeres,
     Os poderes
     Da crueldade
     Na beldade
     Bem mostrou;
     Desprezou
A dádiva de flores; não por minha,
Mas porque muitas mais ela em si tinha.

 
Luís de Camões (1524? – 1580?)

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