terça-feira, 7 de maio de 2024

MANGANÊS (fragmento)

 


 

(…)
 
Perto do fim, a minha avó ensinou-me a rezar.
Encontrava-a prostrada na cama, indiscernível
entre a amarelidão esvaecida dos lençóis,
a murmurar para dentro as suas preces.
O pequeno corpo sacudido por tremores,
como se a aleijasse a escassa vida
que lhe fluía ainda pelas veias.
Ao mínimo movimento, estalava e rangia,
como uma velha barca sob pressão da intempérie,
afligida por dores no sopor da madrugada.
Pela boca desdentada brotavam-lhe
palavras inaudíveis mas urgentes,
prenhes de misteriosos encantos.
Deixou-me um retrato gasto
que carregava sempre no regaço
e onde se entranhara o seu cheiro
de velhice intensamente requentada em solidão,
embora vivêssemos num apartamento minúsculo,
comprimidos uns contra os outros,
partilhando o mesmo ar saturado,
as mesmas batatas ratadas e insossas.
 
(…)
 
Beatriz de Almeida Rodrigues, in Manganês, colecção elemeNtário n.º 6, Flan de Tal, Maio de 2021, 2.ª edição Março de 2024, p. 29.

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