23.
Ouvi, certa vez, um poeta,
ou um velho desconcertado numa película
(coisas que por vezes deixo confundirem-se na memória),
dizer que o seu coração tinha 85 anos,
que já vivera muitos desgostos de amor,
que já acelerara incontáveis vezes o passo
por uma mulher desejada,
por uma paixão certeira para um consolo impossível,
não sendo justo pedir-lhe muitos mais anos.
O fim chegaria, assim, triunfante
a soar o alarme para novos começos,
que o poema ou o velho ou nós mesmos,
não veríamos,
não estaríamos cá para ver,
porque não nos competiria mais estar cá.
O que francamente recebo como a doce oferta da morte,
concebendo a vida, tempo apaixonado,
e se for de outra forma, que se acabe, já.
Nunca mais pensei no tempo que nos resta
sem me lembrar do pequeno coração vigoroso
que dói, grita, vacila, entristece,
se alegra, sem saber que se cerca de esperanças vãs.
Pequeno coração que se vai e que se vem,
sem por ele darmos senão no alarde da eternidade.
E no fim de contas,
não podemos pedir tanto mais ao amor
que, bombeando a vida, nos faz mesmo esquecer
a sua imensamente injustiçada adolescência.
Maria Brás Ferreira (n. 1998), in E o
Coração de Soslaio a Todo o Custo, Officium Lectionis, 2024, p. 40. Como em
muitos outros poetas da sua geração, a formação académica na área da literatura
confere-lhe ferramentas que contribuem para um domínio técnico da linguagem que
redunda num complexo lexical urdido em favor de imagens intimistas e
amiudadamente enigmáticas. O erotismo mais ou menos patente em alguns poemas
abre-se a paisagens barrocas, por vezes de luto, mas contidas na exposição de
afectos, emoções, sentimentos. Há uma racionalidade que se impõe nestes poemas
que os desvia da expressão sensível, mesmo quando o ponto de partida é o corpo
e os seus sentidos, mormente o olhar, centrando o discurso numa imagética cuidadosa,
preferencialmente cifrada por misteriosas associações vocabulares. António
Ramos Rosa e Fiama Hasse Pais Brandão serão, porventura, as vozes com que mais
esta poesia se afina.
ou um velho desconcertado numa película
(coisas que por vezes deixo confundirem-se na memória),
dizer que o seu coração tinha 85 anos,
que já vivera muitos desgostos de amor,
que já acelerara incontáveis vezes o passo
por uma mulher desejada,
por uma paixão certeira para um consolo impossível,
não sendo justo pedir-lhe muitos mais anos.
a soar o alarme para novos começos,
que o poema ou o velho ou nós mesmos,
não veríamos,
não estaríamos cá para ver,
porque não nos competiria mais estar cá.
O que francamente recebo como a doce oferta da morte,
concebendo a vida, tempo apaixonado,
e se for de outra forma, que se acabe, já.
sem me lembrar do pequeno coração vigoroso
que dói, grita, vacila, entristece,
se alegra, sem saber que se cerca de esperanças vãs.
Pequeno coração que se vai e que se vem,
sem por ele darmos senão no alarde da eternidade.
E no fim de contas,
não podemos pedir tanto mais ao amor
que, bombeando a vida, nos faz mesmo esquecer
a sua imensamente injustiçada adolescência.
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