VODKA MATINAL
Afora só bebo vodka barato,
só beijo bocas baratas,
bocas mais velhas, a que faltam dentes,
com rugas nos cantos dos lábios,
bocas que sem abrir a boca
explicam como perdi a minha juventude,
os dezasseis, os vinte e seis, os trinta e seis,
digo trinta e seis e tenho dúvidas.
Preciso ver onde ponho os pés,
ponho os óculos para ver os sapatos,
tiro os óculos para não ver as bocas que beijo,
bocas sem um mínimo travo a dezasseis anos,
sem um travo a framboesas
mesmo se nunca provaram framboesas,
por isso sempre que vou ao mercado compro framboesas.
Compro framboesas porque o rapaz da fruta,
que aos Sábados ajuda o pai no mercado,
tem idade para ser meu filho,
é igual ao pai, quero dizer, vai ser igual ao pai,
corpo seco, cabelo grisalho, sorriso cheio de dentes,
a fruta é um alimento saudável,
rugas profundas.
E entre os dois homens é evidente
só o pai tem olhos, com óculos, para mim,
olhos para o meu corpo, como se usasse balança,
só o pai me descascava e comia
como se eu uma peça de fruta,
e matreira espero para ser atendida pelo rapaz,
o pai já percebeu, claro que percebeu,
os velhos são matreiros
e nós, ainda não velhos, só matreiros,
perdida a inocência, a queimar os últimos cartuchos.
Por isso eu espero, eu quero o rapaz da fruta,
tem idade para ser meu filho,
o rapaz da fruta, repito,
saboreio como se um fruto vermelho,
que ao tratar-me por senhora
não me faz sentir como uma maçã a apodrecer,
uma batata a fermentar, um copo de vodka barato.
Raquel Serejo Martins, in Silêncio sálico, desenhos de Ana Cristina Dias, Poética Edições, 1.ª edição: Julho de 2020, 2.ª edição: Janeiro de 2023, pp. 22-23.
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