terça-feira, 3 de setembro de 2024

UM POEMA DE RICARDO TIAGO MOURA

 

Tanto quanto se sabe, Ricardo Tiago Moura (1978) estreou-se com “Um gato para dois” (2013). Desde então, tem publicado vários livros reveladores de uma poesia fortemente influenciada por soluções formais amadurecidas no terreno da denominada poesia experimental. Ainda que o lirismo não tenha sido radicalmente rasurado nesta poesia, ele surge-nos como que numa posição de subalternidade face à experiência lexical, sintática, formal. “Comunidade – Comunicante” (não (edições), Março de 2024), editado numa “chancela heterogénea dedicada a livros singulares”, não é excepção. Trata-se de um “dois em um”, colectânea de dispersos que se desvia do formato convencional desse tipo de livros almejando um equilíbrio incomum. A parte intitulada “Comunidade” é especialmente cativante, com os títulos dos poemas a assumirem a forma de didascálicas naquilo a que podemos dar o nome de poema dramático, uma espécie de peça coral para personagens tipo oriundas do métier literário e artístico. Além dos poemas, este livro oferece-nos igualmente um conjunto de colagens. São estas, por assim dizer, a cenografia onde as vozes do poeta, da escritora, do autore, da investigadora, do crítico, da artista, da gestora cultural, do editor, da curadora, do ficcionista, enfim, de «uma comunidade / de gente que pretende / e se protege / pertencendo», vêm à cena dizer de sua justiça, num processo quase invariavelmente de recusa ou problematização do seu estatuto enquanto personas. A dispersão, mais evidente na parte com o título “Comunicante”, logra, ainda assim, um equilíbrio temático que confere ao conjunto uma linha de pensamento inequívoca, problematizando a relação leitor/lido, espectador/autor, «autor-leitor abraçados». Um poema:
 
(cruz-vermelha)
 
é urgente:
não precipitar
não chegar
ao fim
da rua a desaprender a trote
as compras ou as horas
não precisam de sarcasmo
oportunamente a explicar
mas assentam nele tão bem
em todos os espaços do meio
 
e não escrevo isto com motivos
porque fácil é amar
uma ponte um resquício
de ontem
mas bonito é gostar
de bairros sociáveis
aceitar
foder rápido
em várias periferias
 
é urgente:
não comunicar
contracopular
ler o que diz
a fome
que digo eu
falo de cor
 
Ricardo Tiago Moura, in Comunidade – Comunicante, não (edições), Março de 2024, s/p.

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