terça-feira, 17 de dezembro de 2024

O QUE GEROU ÉDIPO?

 



   Faço a pergunta, obviamente, numa época em que, ao mesmo tempo, se idealiza nostalgicamente a família em diferentes formas culturais, em que o Vaticano protesta contra a homossexualidade como ataque à família e à ideia de humano, em que, para algumas pessoas, ser humano exige participar na família, em sentido normativo. Faço a pergunta também numa época em que, por divórcio e segundo casamento, por migração, exílio e obtenção do estatuto de refugiado, por diferentes deslocações globais, as crianças passam de uma família a outra, deixam de ter família, passam a tê-la, numa época em que podem mesmo ter mais de uma mulher como mãe, mais de um homem como pai, ou nem terem mãe ou pai, terem meios-irmãos que são também amigos: vivemos numa época em que o parentesco se tornou frágil, poroso e expansivo. Vivemos também numa época em que as famílias heterossexuais e gay por vezes se combinam, ou emergem famílias gay em formas nucleares e não nucleares. Qual será o legado de Édipo para quem cresce nestas situações em que as posições dificilmente são claras, em que o lugar do pai se dissipa, em que o lugar da mãe é ocupado ou desligado de variadas maneiras, em que, na sua estase, o simbólico já não se mantém?

Judith Butler, in "A Pretensão de Antígona", tradução de Nuno Quintas, Orfeu Negro, Abril de 2024, pp. 37-38.

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