segunda-feira, 17 de novembro de 2025

UM POEMA DA TATIANA FAIA

 


FIASCO E MELANCOLIA

nas semanas em que declaro
que este trabalho me há-de matar de cancro
o cônjuge garante-me
que o cancro não funciona assim

e a ceo da empresa
antiga paramédica de combate no exército
israelita com intricadas ligações à mossad
via chicago e washington d.c.
envia-me brownies ao sábado de manhã
a meio de uma pandemia global
o que me acorda demasiado cedo
e me força ao contacto com o carteiro
e eu quando me deparo com a caixa
sem remetente e o selo
com a efígie da rainha de inglaterra penso
que podia facilmente ser uma bomba

e as cartas que ela me escreve comovem-me
de um modo barato e simples
e provocam-me o tipo de sentimentos
que uniram bernardo soares ao patrão vasques
por todo o tempo que durou o desassossego

na solidão das casas iluminadas
de madrugada e pela noite fora
nós os amanuenses somos
toda uma espécie de vasto contrato social
mas o que me mantém humana é escasso:

a memória de uma tarde de chuva em lisboa
o vento soprando contra a multidão
até ao arco da rua augusta
enquanto à minha frente um homem de fato
cinzento-escuro e pasta de couro
caminha fazendo os sapatos ressoar na calçada
e em sincronia com a chuva
fecha o chapé com um delicado
e quase imperceptível passo de dança
no preciso momento em que pára de chover
recordando-me por um breve instante
que a profunda respiração do mundo ainda existe

e continuará apesar de nós

Oxford, 2 de Maio de 2020

Tatiana Faia, in Recurso e Pobreza, Edições Tinta-da-china, Fevereiro de 2025, pp. 19-20.


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