terça-feira, 21 de novembro de 2006

FIALHO NEGRO

Há coisa de uns 10 anos ficava eu noite dentro cativo da TV para assistir ao Conversas Secretas, programa de Baptista-Bastos, transmitido na SIC, que se celebrizou depois de Herman José o ter caricaturado numa rábula que consistia na repetição exaustiva da pergunta: «Onde estava no 25 de Abril?» Num desses programas, Baptista-Bastos saiu-se com esta: «Qualquer candidato a escritor português devia ser obrigado a ler Os Gatos, de Fialho de Almeida». Ora eu, à época contaminado por lúgubres ambições, não quis perder tempo e, no dia seguinte, fui à cata da imprescindível obra que faria de mim, mais que não fosse, um esforçado candidato a escritor. Encontrei um pequeno volume da Ulisseia que compilava alguns textos do que vim a saber tratar-se de seis volumes de fascículos editados semanalmente entre 1889 e 1894. Serviu o pequeno volume para abrir o apetite para a mais corrosiva obra de autor português que algum dia me foi dado ler. José Valentim Fialho de Almeida, nascido alentejano em 1857, era de origens humildes, tendo nutrido, desde muito cedo, um ódio, a que alguns chamariam ressaibo, por tudo o que cheirasse a burguesia rica e aristocracia do «pé fresco». Após ter concluído a instrução primária, foi internado num colégio em Lisboa. A experiência durou cinco anos, tendo o escritor que se fazer à vida como praticante numa farmácia. Foi por essa altura, aos dezassete anos, ainda antes de completar o curso de Medicina, que começaram a surgir as suas primeiras crónicas num jornal de Leiria. Escrevia sobre teatro, circo, sobre a sociedade lisboeta, arte, literatura, sobre gente humilde. Aluno avesso à disciplina, era descrito como um hipocondríaco que alternava dias de exuberância com outros de depressão, ou seja, «neurasténico, deprimido e ensimesmado». A propensão panfletária, difamatória, satírica e maledicente, foi sendo aguçada nesses tempos, por vezes sob os pseudónimos de Valentim Demónio e, mais tarde, de Irkan. A política de Fialho era apenas uma, bem sintetizada nesta breve asserção de Suicide-House: «A vida é uma peça, e quem a acha má tem dois recursos: pateá-la, é o meu caso; ou ir-se embora, o que é o caso dos suicidas». Daí que o próprio não tenha feito cerimónia em magicar uma «instituição humanitária» ao serviço do suicídio, cuja divisa «Mata-te antes que te matem» nos parece suficientemente clarificadora do espírito desprendido deste bravo lusitano. No ano da graça de 1881, o reconhecimento chegou-lhe por via de um volume de Contos dedicado a Camilo Castelo Branco. Terminado o curso de Medicina, casou, aos trinta e seis anos, com Emília Ausgusta Garcia Pego, órfã de famílias abastadas do Alentejo, o que daria azo a várias intrigas sob o móbil do casamento. Certo é que a coincidência da morte de sua querida esposa, vítima de tuberculose, granjeou Fialho com uma fortuna que lhe permitiu uma dedicação às letras de outra forma insustentável. Este pequeno folheto da colecção contramargem da & etc, intitulado Fialho Negro (1981), reúne cinco exemplos da faceta mais negra de um autor que, por estes dias, me leva a crer ter sido detentor de um estatuto que muitos hoje almejariam mas poucos, quase nenhuns, logram equiparar. Maledicentes de língua manca são o que para aí não falta, assim como almas reptilárias de veneno açucarado. Tagarelas, palradores, gente absolutamente certa de certezas nenhumas, arrivistas e indigentes, anónimos-convictos-anónimos, artilheiros obscuros, há tantos quantos chapéus e carapuças. Mas poucos, como Fialho, lograriam assinar uma Carta a Sua Majestade, sugerindo-lhe um regicídio em nome do prestígio da coroa, proponde-se mesmo espatifar o rei que, desavergonhadamente, ainda se mantinha vivo. Termino dando luz da vida literária no tempo de Guilherme D’ Azevedo, autor de uma poesia «gorjeada de superficialidades sem arranco, ajanotada e romanesca», sequência de «banalidades doces, ditas a namoradas, a invocações à musa em tom grandíloquo, a desalentos sem causa e cepticismo sem filosofia»: «A vida literária no tempo de Guilherme, era pouco mais ou menos o que é hoje; misantropias azedas sem vintém, acessos de mau humor com pretensões paradoxais, ceias baratas, espanholas, redacções, Martinho, Grémio, casa Havanesa, e os camarins d’ algumas cómicas mais puxadas». Mudem-se os nomes aos lugares, qualquer semelhança com os dias de hoje é pura… história para comentaristas.

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