quarta-feira, 8 de novembro de 2006

BARREIRA INVISÍVEL

O que é hoje o mundo que não tenha sido ontem? Temos novos medicamentos, novos inventos, a cada dia que passa sabemos um pouco mais que ainda há muito por saber acerca do mundo em que vivemos. Teremos, com essas mudanças, diminuído as assimetrias que separam os pobres dos ricos, os fracos dos fortes, teremos, com essas mudanças, tornado o mundo menos injusto? De que nos vale, então, saber um pouco mais do que ainda tanto temos por saber? Não podemos afirmar que hoje o mundo seja mais complexo. Para o homem de ontem a complexidade do mundo seria a mesma ou, quem sabe, maior ainda. Nada podemos comparar a partir de uma perspectiva assim tão linear. Mas sabemos que houve um tempo, terá havido um tempo, em que estávamos mais próximos do réptil do que estamos hoje. Houve um tempo, terá havido um tempo, em que a barreira que nos separa da natureza era bem mais invisível. A questão é: olhamos o homem, o que vemos? Vemos linguagem. É célebre o parágrafo de Ludwig Wittgenstein: «Os limites da minha linguagem significa os limites do meu mundo». Acrescentemos este outro, talvez menos conhecido: «Eu sou o meu mundo. (O microcosmos)». Que mundo é esse? Talvez um mundo maquinal, em que tudo acontece porque tem que acontecer; talvez um mundo maquinal até nos seus acasos. Talvez um mundo cruel, tão cruel quanto a natureza. Sabemos que o mundo dos homens é um mundo cruel, um mundo de equívocos, erros, conflitos, guerras. Desses erros, desses conflitos, surge por vezes uma luz, muito ténue, que nos dá esperança e permite respirar. Nós, aqui sentados, no conforto de um lar onde a maior dor que temos é a de estarmos sós com as nossas palavras, podemos respirar. No campo de batalha, onde a crueldade vem à tona dos movimentos, onde se torna explícito o fim para que foram treinadas e fabricadas as máquinas, aí, nesse cenário de todas as provações, respirar torna-se bem mais difícil. William Burroughs escreveu certo dia que «a palavra escrita foi literalmente um vírus que tornou possível a palavra falada». É provável que o hospedeiro desse vírus, nós mesmos, tão confundidos que estamos hoje com a palavra, sejamos já mais o vírus que, segundo Burroughs, a palavra é do que outra coisa qualquer. Se assim for, fará muito mais sentido acreditarmos que «todo o ódio, toda a dor, todo o medo, toda a concupiscência estão contidos na palavra». Porque todo esse ódio está dentro de nós. Porquê? Pelo poder, pela ânsia de poder? Pela ambição? Por sermos pó e disso não termos consciência senão quando mergulhamos no pó, na lama, como vermes insignificantes? O soldado Witt (Jim Caviezel), d’ A Barreira Invisível que Terrence Malick nos deu a ver em 1998, via outro mundo. Não sabemos bem qual era esse mundo: se um mundo de mortos, se um mundo onde ainda não tivesse sido erigida essa fronteira entre o animal e o homem, a natureza e a sociedade, a paz e a guerra, a vida e a morte, o amor e o ódio. Nas ilhas dos mares do sul, os indígenas, talvez da tribo de Tuiavvi de Tiavéa, têm medo dos homens que parecem soldados. Andam desprovidos de fardas, vivem do que a natureza lhes dá. O mundo deles parece ser bem calmo, apesar de nadarem para acalmar. Talvez se referisse a esse mundo o soldado Witt, talvez para ele a morte fosse, digamos assim, deixarmos de ser linguagem, deixarmos de ser vírus, para passarmos a ser tão naturais quanto o ar que respiramos… fora do campo de batalha. A Barreira Invisível é um filme de guerra, o filme da guerra das guerras, aquela que, desde que o homem é homem, opõe o que somos ao que temos que ser. Noutros tempos, Sófocles escreveu sobre o mesmo na Antígona. Estaremos nós melhor do que estava Sófocles no seu tempo? Serão as balas, as minas, os mísseis, mais doces do que a espada à hora da morte?

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