sábado, 11 de novembro de 2006

UM BLUES NO DESERTO

Por Favor, Um Blues, de Silvia Chueire; Biografia do deserto, de Alexandre Bonafim. Alguns pormenores ligam estes dois livros: ambos de poetas brasileiros contemporâneos, autores de weblogs que são, ao mesmo tempo, oficinas de escrita e lugares de partilha. Alguns dos poemas do livro de Alexandre Bonafim, em edição de autor, podem ainda ser encontrados no weblog Arqueologia dos acasos. Já Silvia Chueire preferiu apagar os arquivos do eugenia in the meadow, agora apenas in the meadow, encerrando assim um ciclo de labor poético que culminou na edição de uma colectânea com o selo da pequena editora portuguesa Cosmorama. Por Favor, Um Blues chegou-me com um ano de atraso, publicado que foi em Setembro de 2005. Tratando-se de um livro construído ao ritmo frenético de um diário, é natural que lhe detectemos alguma dispersão. Alguns poemas carecem, quanto a mim, de uma revisão que passaria por um apuramento da pontuação e, consecutivamente, do seu sentido rítmico. Darei um exemplo, por me parecer especialmente esclarecedor de como um bom poema pode ser prejudicado por essa falta de revisão. Refiro-me ao poema intitulado em voz baixa, do qual destaco a seguinte estrofe: «quando te dôo as minhas palavras / é para que as tomes como tuas, / faças delas abrigo, / procures-te nas perguntas, / percas-te nas afirmações. / para que te dispas / e as deixes penetrar na tua pele» (p. 59). Não me referirei às especificidades do português do Brasil que levam a autora a usar uma acentuação que por cá seria estranha, assim como, noutros casos, a grafar ato em vez de acto, fratura em vez de fractura, fato em vez de facto, afetos em vez de afectos, etc. Essa discussão, confesso, não me interessa minimamente. A questão que levanto é mais no sentido de uma noção, se quiserem, musical, ou rítmica, da própria língua. Pergunto-me por que tendo a autora, na estrofe acima transcrita, optado pelo pronome «te» antes dos verbos «doar» e «despir» o mesmo não aconteceu com os verbos «procurar» e «perder». Não seria preferível, então, ficarem esses dois versos do seguinte modo: «te procures nas perguntas, / te percas nas afirmações»? À parte estes particularismos, certamente discutíveis, podemos dizer que aquilo que se destaca nos poemas de Silvia Chueire é a noção do poema enquanto gesto. Por vezes em tom interrogativo, outras vezes em tom declarativo, a poeta faz questão de sublinhar uma certa lucidez quanto ao alcance dos seus frutos, não negando aos poemas o lugar de uma certa forma de vida: «o poema não redime / não substitui, / não traz de volta. / o poema é a faísca, / a evidência da faísca» (pp. 17-18). A mesma faísca vislumbramos nos poemas de Alexandre Bonafim, embora neste caso essa faísca seja elevada à condição de milagre. Biografia do deserto abre com epígrafes de Hilda Hilst, Fabrício Carpinejar e Álvaro de Campos. Em nota reproduzida nas badanas, Donizete Galvão chama a atenção para as personagens que habitam estes poemas: «seres sempre à margem, como mendigos, deformados, a avó prestes a morrer, o João que vai ao banco, os desafortunados». Por sua vez, no prefácio, Josias Padilha fala de uma riqueza de imagens «ao serviço do oco, do vazio, do nada, da ausência, da orfandade de um mundo que perdeu o sentido». Parece-me que ambas as considerações sintetizam bem o que encontramos nesta colectânea, ou seja, um olhar mais voltado para fora, para o outro, acossado de uma melancolia que não impede o milagre da beleza no que os demais tenderiam a ver somente como sinal de decadência. Alexandre Bonafim confere ao poeta o estatuto de uma espécie de xamã, um xamã ao serviço dessas pequenas epifanias que são os poemas enquanto lugar do belo, do mistério da vida, dos milagres obscurecidos pela impaciência das horas. Esses «milagres súbitos» aparecem logo evidenciados nos cinco poemas em prosa que têm por base filmes de Krzysztof Kieslowski, Tran Anh Hung, Majid Majidi, Wong Kar-wai e Abbas Kiarostami, mas são ainda mais evidentes na forma burilada com que Bonafim expõe os seus poemas, em verso curto, léxico escolhido a dedo, imagens de uma leveza tão doce, romântica e melancólica, mas nem por isso menos trágica, quanto a música de Chet Baker. Por vezes resvala num sentimentalismo algo entediante, denotado, desde logo, no abuso dos plurais (os amanheceres, as ausências, os crepúsculos, os delírios, etc). Seja como for, não é esse «por vezes» que deve definir uma poesia consciente dos paradoxos que enformam a vida e nos mantêm, quais grãos de areia num extenso deserto, entre a vastidão da terra e a imensidão do céu.

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