Excerto do discurso de Alexandra Lucas Coelho, ao receber o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de
Escritores, atribuído ao seu romance "E a noite roda".
"Estou a voltar de três anos e meio a morar no Brasil. Um dia,
a meio dessa estadia brasileira, pediram-me que gravasse um excerto de um conto
de Clarice Lispector para o site do Instituto Moreira Salles. Era um conto em
que a protagonista era portuguesa, daí o pedido, que a voz coincidisse com o
sotaque. Como detestei aquela portuguesa do conto da Clarice. Tudo na boca dela
era inho e ito. Era o Portugal dos Pequenitos com a nostalgia das grandezas.
Aquele que diz “cá vamos andando com a cabeça entre as orelhas” mas sofre de
ressentimento. O Portugal que durante 40 anos Salazar achou que era seu, pobre
mas honesto-limpo-obediente, como agora o governo no poder quer Portugal,
porque acha que Portugal é seu.
Estou a voltar a Portugal 40 anos depois do 25 de Abril, do
fim da guerra infame, do ridículo império. Já é mau um governo achar que o país
é seu, quanto mais que os países dos outros são seus. Todos os impérios são
ridículos na medida em que a ilusão de dominar outro é sempre ridícula, antes de
se tornar progressivamente criminosa.
Entre as razões porque quis morar no Brasil houve isso:
querer experimentar a herança do colonialismo português depois de ter passado
tantos anos a cobrir as heranças do colonialismo dos outros, otomanos,
ingleses, franceses, espanhóis ou russos.
E volto para morar no Alentejo, com a alegria de daqui a nada
serem os 40 anos da mais bela revolução do meu século XX, e do Alentejo ter
sido uma espécie de terra em transe dessa revolução, impossível como todas.
Este prémio é tradicionalmente entregue pelo Presidente da
República, cargo agora ocupado por um político, Cavaco Silva, que há 30 anos
representa tudo o que associo mais ao salazarismo do que ao 25 de Abril, a
começar por essa vil tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam um
império perdido.
E fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada estranho,
pois, que este presidente se faça representar na entrega de um prémio
literário. Este mundo não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país
não é o seu país. No país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as
orelhas, “e cá vamos indo, se deus quiser”.
Não sou crente, portanto acho que depende de nós mais do que
irmos indo, sempre acima das nossas possibilidades para o tecto ficar mais alto
em vez de mais baixo, Para claustrofobia já nos basta estarmos vivos, sermos
seres para a morte, que somos, que somos.
Partimos então do zero, sabendo que chegaremos a zero, e pelo
meio tudo é ganho porque só a perda é certa.
O meu país não é do orgulhosamente só. Não sei o que seja
amar a pátria. Sei que amar Portugal é voltar do mundo e descer ao Alentejo,
com o prazer de poder estar ali porque se quer. Amar Portugal é estar em
Portugal porque se quer. Poder estar em Portugal apesar de o governo nos mandar
embora. Contrariar quem nos manda embora como se fosse senhor da casa.
Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui
representado hoje, que este país não é seu, nem do governo do seu partido. É do
arquitecto Álvaro Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio
Lisboa, de todas as vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no
Brasil, dando conta do pesadelo que o governo de Portugal se tornou: Siza
dizendo que há a sensação de viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo
que este governo rebentou com tudo o que fora construído na investigação,
Eugénio Lisboa, aos 82 anos, falando da “total anestesia das antenas sociais ou
simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas
que a História não confina a míseras notas de pé de página”.
Este país é dos bolseiros da FCT que viram tudo interrompido; dos milhões de
desempregados ou trabalhadores precários; dos novos emigrantes que vi chegarem
ao Brasil, a mais bem formada geração de sempre, para darem tudo a outro país;
dos muitos leitores que me foram escrevendo nestes três anos e meio de Brasil a
perguntar que conselhos podia eu dar ao filho, à filha, ao amigo, que pensavam
emigrar.
Eu estava no Brasil, para onde ninguém me tinha mandado, quando um membro do
seu governo disse aquela coisa escandalosa, pois que os professores emigrassem.
Ir para o mundo por nossa vontade é tão essencial como não ir para o mundo
porque não temos alternativa.
Este país é de todos esses, os que partem porque querem, os que partem porque
aqui se sentem a morrer, e levam um país melhor com eles, forte, bonito,
inventivo. Conheci-os, estão lá no Rio de Janeiro, a fazerem mais pela imagem
de Portugal, mais pela relação Portugal-Brasil, do que qualquer discurso oco
dos políticos que neste momento nos governam. Contra o cliché do português, o
português do inho e do ito, o Portugal do apoucamento. Estão lá, revirando a
história do avesso, contra todo o mal que ela deixou, desde a colonização, da
escravatura.
Este país é do Changuito, que em 2008 fundou uma livraria de poesia em Lisboa,
e depois a levou para o Rio de Janeiro sem qualquer ajuda pública, e acartou
7000 livros, uma tonelada, para um 11.º andar, que era o que dava para pagar de
aluguer, e depois os acartou de volta para casa, por tudo ter ficado demasiado
caro. Este país é dele, que nunca se sentaria na mesma sala que o actual
presidente da República.
E é de quem faz arte apesar do mercado, de quem luta para que haja cinema, de
quem não cruzou os braços quando o governo no poder estava a acabar com o
cinema em Portugal. Eu ouvi realizadores e produtores portugueses numa
conferência de imprensa no Festival do Rio de Janeiro contarem aos jornalistas
presentes como 2012 ia ser o ano sem cinema em Portugal. Eu fui vendo, à distância,
autores, escritores, artistas sem dinheiro para pagarem dividas à segurança
social, luz, água, renda de casa. E tanta gente esquecida. E ainda assim, de
cada vez que eu chegava, Lisboa parecia-me pujante, as pessoas juntavam-se,
inventavam, aos altos e baixos.
Não devo nada ao governo português no poder. Mas devo muito aos poetas, aos
agricultores, ao Rui Horta que levou o mundo para Montemor-o-Novo, à Bárbara
Bulhosa que fez a editora em que todos nós, seus autores, queremos estar, em
cumplicidade e entrega, num mercado cada vez mais hostil, com margens canibais.
Os actuais governantes podem achar que o trabalho deles não é ouvir isto, mas o
trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi para ouvir isto, o que as
pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não por mim. Cargo público não é
prémio, é compromisso.
Portugal talvez não viva 100 anos, talvez o planeta não viva 100 anos, tudo
corre para acabar, sabemos, Mas enquanto isso estamos vivos, não somos
sobreviventes."
4 comentários:
Acho que somos muitos os agradecidos.
Foi pena sua cavacal excremência não estar presente para ouvir a coisa em voz de gente.
Não sei, amigo, espero que sim.
Excelente a Alexandra, grande discurso. Sempre gostei imenso dela.
~CC~
Os ataques a escritores incómodos vão-se multiplicar. Já se fazem nas suas páginas pessoais, quer nas redes sociais quer em blogues por anónimos que ocultam o rosto e o nome. Os chamados trolls. Ou Àqueles que os lêem e sobre eles falam.
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