«Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui»!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: «vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, serei vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
.E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!
José Régio (n. 1901 - m. 1969), in Poemas de Deus e do Diabo (1925). «Ao contrário do que acontece entre nós, ao contrário do que acontece no Brasil, onde os grandes poetas, mesmo João Cabral de Melo Neto, têm edificado a sua obra predominantemente dentro das novas formas, José Régio parece nem as ignorar, para ser como se elas nunca tivessem existido. Apesar de um poema como Bailarino, que poderia ser caro a Mário de Sá Carneiro ou a José de Almada Negreiros, o poeta que temos presente vai entroncar directamente nos versificadores tradicionais e, além de utilizar os metros, os esquemas estróficos, a rima que neste século têm tido menos favor, chega mesmo a recorrer às chamadas liberdades poéticas, que, como é natural, deixaram de ter sentido quando se instaurou a grande liberdade poética. Por outro lado, se se considerar a introdução da inteligência, da reflexão na arte como a grande conquista moderna, particularmente característica da obra de Fernando Pessoa, não deixaremos de notar que, embora de construção lapidar, a poética de José Régio se apoia predominantemente na sensibilidade. E o efeito surpresa, os deliciosos traumatismos que a melhor poesia do nosso tempo se mostra capaz de produzir cedem aqui o lugar à regularidade da versificação, à perfeição dos esquemas. // (...) Para Régio, a poesia é música, canção, são «rimas e ritmos» e o poeta é um trovador que mede pelos dedos subtis segredos». (Ruy Belo, in Em Torno do Último Livro de Poesia de Régio)
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