terça-feira, 29 de abril de 2014

[E ENTÃO UM DIA SERÁ CONTRA MIM]


E então um dia será contra mim
que toda esta gente encostada ao medo
voltará a sua solidariedade.

Alguns, é certo, mais impacientes,
ao minuto dez perderão todo o interesse
na morte que ali os trouxe,
farão uma roda cúmplice, contarão
anedotas de alentejanos e louras,
entre olhadelas ao relógio,
faz-se-me tarde, o diabo do padre
nunca mais vem.

Pelo contrário, aqueles que se perfilam
logo atrás de mim na desapiedada
cronologia da morte
manipularão preces sem pressa
tementes ao aviso: cras tibi.

Honesta e friamente laborais,
carpideiras rezarão, rasarão
a orla da morte com a sua piedade
- ciciada, para que não se ofendam
os ouvidos de Deus.

Entalado entre as minhas tábuas
não hei-de eu estar feliz?


A. M. Pires Cabral (n. 1941), in Como se Bosch tivesse enlouquecido (2003). «Velhos, prostitutas, burros, tílias, ciganos, emigrantes, ceifeiros, a realidade geo-humana de um país, de uma região desse país, atinge-nos sem qualquer colorido turístico, sem qualquer mítica da raça e, sobretudo, sem qualquer demagogia conteudística. Este último ponto é muito importante. A. M. Pires Cabral conseguiu, entre outras coisas, libertar o realismo na nossa poesia das peias da demagogia, da utilização de agregados humanos como «aquecidos» locais verbais de que a poesia se servia para que não dissessem que não estava atenta ao mundo. (...) Embora o movimento de ligação à terra e à memória se não perca nunca nos livros de António Manuel Pires Cabral posteriores a Algures a Nordeste [1974], há neles uma efectiva atenuação da busca de enfrentar explicitamente o seu mundo social e pessoal. Essa atenuação reside, sobretudo, nas tentativas de elaborar uma linguagem cujo peso estilístico se aproxime mais do jogo conceptual, de modo a criar (por aliterações, por cortes, pelo recurso à motivação vocabular) contextos mais intencionalmente polissémicos. (...) Contudo, a presença da vocação confessional e a veemência da atenção social, (mais ligada ao imaginário do naturalismo), ocultavam esta busca latente de um estilo em que o jogo verbal se sobrepusesse ao jogo dos sentimentos, das emoções e mesmo dos apelos. Está levantado o indicador de um outro processo da distanciação da subjectividade sentimentalizante». (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos)