Além da página em branco, há um outro recurso que se vai
tornando mais recorrente. O poema rasurado expressa uma intenção distinta do
poema vazio. No poema vazio (ou quase) a ausência de palavras induz no leitor
sensações contraditórias, ao passo que o poema rasurado é muito mais objectivo
quanto à vontade do autor. Neste caso, há como que uma suspensão do conteúdo.
Geralmente, apagamos o que não interessa. Talvez queiramos com o poema rasurado
mostrar o que não interessa. Veja-se este exemplo encontrado no livro
Compositores do Período Barroco (Deriva, 2013), de José Ricardo Nunes:
Optar por não suprimir literalmente o texto acaba por
atribuir-lhe um estatuto dúbio, conferindo-lhe uma autonomia e exclusividade
que os outros poemas do conjunto não merecem. O poema rasurado é e não é. Repare-se que não se trata de
algo que foi deitado para o lixo, mas sim de um texto que se isola do conjunto por
haver nele uma especificidade que o ostraciza. Um outro exemplo
aparece-nos no livro Equatorial, excelente antologia do poeta brasileiro
Fabiano Calixto sobre a qual deixarei um post em breve:
Neste exemplo, o título do poema escapou à rasura. Lido o
que se esconde por detrás dos riscos, percebemos existir na atitude um gesto
lúdico típico da poesia concreta. Ou seja, transforma-se em expressão o aspecto
gráfico. Tanto num caso como no outro devemos ressalvar a coragem dos autores
em ultrapassar as fronteiras de um dicção convencional. A pergunta que se impõe
é: como ler em voz alta estes textos? Coloco-me a mesma questão sobre as páginas
em branco ali partilhadas. Há nestes textos algo que escapa à recitação. Nos poemas em branco escapa a capacidade do leitor para imaginar sobre o branco da página, nos poemas rasurados escapa o efeito da rasura. E o mesmo poderíamos questionar acerca do título de
um livro como este de Miguel-Manso, que no interior se explica com poema
epigramático deixado ao alto:
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